terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Diálogo

 A Lua já não era visível.As estrelas confundiam-se com a claridade do alvorecer, amanhecia. O sol subia no horizonte e afagava os ornatos superiores do maior edifício de Montemor-o-Velho - os Paços do Concelho. O sol chamou-lhe Palácio e enquanto o acariciava com o seu calor e despertava para mais um dia, disse-lhe:

- Sabes Palácio, tenho pressa em iluminar-te, sabes porquê?
- Não, diz-me...
- Porque és bonito! És um Palácio soberbo!
- Gosto do galanteio - retorquiu - eu já tenho muitos anos, estou de pé desde 1892. Já vivi muito, tenho muitas recordações, boas, menos boas e, saudades. Mas os teus elogios não apagam as minhas mágoas...
- Mágoas? Tu?! - inquiriu o sol - queres desabafar?
O grande palácio, um tanto austero, tomou então da palavra com uma calma triste:
- Esta Praça, que se chama da Républica, está mais desolada que um largo duma pequena aldeia remota. E no entanto, tem um desenho tão belo, dela até se vê o Castelo, que é a coroa da Vila ! Mas tão árida, nem uma flor, ou folha verde, nem uns jactos d’água que a enfeitem, nem população, é apenas um Largo, que tristeza...
- Ora, Palácio, são os efeitos da crise, que há-de terminar... Não! O que te digo é anterior à crise. Sou velho mas ainda consigo destrinçar. Aos domingos e dias feriados esta Praça é sinistra de tão vazia. Nem calculas a tristeza que me invade nesses dias. Nem um restaurante, nem um café aberto...Lembra um suicídio colectivo, um êxodo total! É então que na minha solidão recordo o passado, quando os bancos à minha porta eram poucos para os trabalhadores que aí se sentavam para descansar e conversar, nas tardes de domingo! Nos passeios que me contornam, acomodavam-se também as mulheres que vendiam tremoços e castanhas, e os engraxadores com a respectiva caixa para o seu trabalho. Formavam-se grupos, que falavam, havia vida... No café Girão, pequeno mas acolhedor, os homens preguiçavam na explanada sobre o passeio, enquanto o empregado, (o Manel do Café) impecável no seu casaco branco e no seu trato, os servia incansável.  Mesmo na minha frente, o Café Mondego, pequenino, o Café do Henrique, o inventor das Espigas Doces, essa delicia!
- Um inventor? Em Montemor?
- Há! Sim, ele devia ter lido o Fernando Pessoa - "quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce!" Sonhou e tornou realidade um doce para Montemor, como era então conhecido. Que saudades desses tempos. O meu coração de velho não esquece, e agora nada me alegra...
- Queria animar-te, meu amigo. Mas as minhas histórias são iguais às tuas. Como sabes, eu, um amigo dos turistas, vi há tempos um carro cheio deles quedar-se à entrada da Vila para as fotografias da praxe ao magnífico Castelo. Depois dirigiram-se para o centro da Vila. Era Domingo e tudo estava fechado. Deram meia volta. Segui-os num dos meus raios até Tentúgal, onde se sentaram a uma mesa de café a saborear pastéis e queijadas.
- Não digas mais...
- Voltas amanhã?
- Claro, todos os dias!
- Mas promete-me uma história mais feliz....