terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

A Boneca

 Hoje é um dos Lares da Terceira Idade que existe em Montemor-o-Velho, mas há uns anos era um hospital, e o seu nome  Hospital de Nossa Senhora de Campos. Era um óptimo edifício com boas instalações para a época, com enfermarias arejadas e bem iluminadas pela luz do sol, e no seu interior albergava o necessário para o fim a que era destinado, devolver a saúde a quem se via privado desse bem. E eram muitas as pessoas que por ali passavam. O Sr. Dr. Afonso mandava-as para o hospital porque ali ele as observava todos os dias, quando pela manhã ia ao hospital com esse fim. E outras morriam, mas ele também sabia que ali tinham carinho e amparo até aos últimos momentos, proporcionados pelas Irmãs de Caridade duma Ordem Religiosa que ali habitavam em semi-clausura e que, dia e noite cuidavam dos doentes, só pelo amor a Deus.        Algumas nunca esquecidas, a Irmã Maria de Jesus, um tanto mais tarde a Irmã Nazaré e outras que deixaram saudades.Eram as Irmãzinhas... Faziam serviço de enfermagem porque eram enfermeiras, mas também eram elas que piedosamente fechavam os olhos e vestiam os que ali terminavam os seus dias, e depois rezavam em sua memória.  

Numa cama das enfermarias mais pequenas, estava alguém, não sei a idade, era uma menina, era uma rapariga, não sei. Só avaliei a idade, quando anos mais tarde lhe vi aparecer entre o cabelo brilhante e escuro, alguns cabelos brancos.    
Foi uma criança que nasceu altamente deformada, permanecia encolhida na cama, rastejava mas nem sequer de joelhos. A voz também tinha um timbre estranho, e presumo que teve mentalidade infantil até muito tarde. Como todas as crianças era alegre, conhecia toda a gente e a todos chamava pelos nomes e bem alto.
Dizia-se que era de família pobre e natural de Tentúgal, a mesma naturalidade do Sr. Dr. Afonso. Ele terá conhecido os pormenores, e conduído "trouxe-a" para o hospital. As Irmãzinhas a acarinharam, cuidaram dela, ensinaram-lhe o que puderam, e ali foi a sua casa para sempre. Era a  Ermelinda! Toda a gente a mimava, se nem sempre com algo material, mas uma palavra, uma festinha nunca falhava.
Eu vi a Ermelinda porque a minha avó foi para o hospital em perigo de vida, e ficou numa cama ao lado da cama dela. Eu era miúda, teria quase seis anos, e quando a minha avó melhorou, a minha mãe levou-me com ela numa das visitas. Eu tinha uma boneca com cabeça de loiça, com cabelo natural e olhos que abriam e fechavam, e um vestido de sêda amarela. Eu adorei aquela boneca quando abri a caixa que o meu pai me entregou, na volta duma ida a Coimbra.
Entendi que a devia levar para mostrar à minha avó, e a minha mãe não achou mal. Quando me aproximei das camas, a Ermelinda deu um grito muito alto, de contente, e pediu para agarrar a boneca. Os seus lindos olhos negros brilharam de alegria ao pegar na boneca, que de boa vontade eu lhe coloquei nas mãos e deixei-a ficar com ela durante o tempo da visita.  O pior veio depois, para ela ma devolver... lágrimas, gritos, agarrada à boneca, e a Irmãzinha a falar-lhe, a tentar fazê-la compreender, o que era difícil, talvez até impossível, digo eu agora. Entretanto, já não era só ela que chorava...     
E eu embora criança também senti pena dela, mas a boneca era minha e eu queria trazê-la, e trouxe.
Há noite contei ao meu pai com todos os pormenores o que tinha acontecido, e disse logo que nunca mais levava a boneca quando voltásse ao hospital. 
O meu pai respondeu com um conselho, que no caso dele, era uma ordem: 
- quando voltares ao hospital, levas a boneca para a dares à Ermelinda. 
Foi a minha vez de chorar, e de manifestar a minha recusa, então se eu gostava tanto dela...
Ele argumentou de modo a que eu, também criança, entendêsse sobre a vida daquela menina, e eu deixei de chorar.
-Ele continuou, ela precisa da boneca e tu vais levar-lha e eu compro-te outra. 
Então porque não lhe dou essa que me vai comprar? dou-lhe essa, pronto.
- Não, porque ela só conhece esta, e é desta que ela gosta, e tu vais ficar contente por lha oferecer! Tenho a certeza.
E assim foi na verdade, tudo como o meu pai me havia dito. Fomos ao hospital, dei um beijinho à boneca, e a sorrir coloquei-a nas mãos da Ermelinda dizendo bem alto, toma! é para ti. E fiquei contente por a deixar para ela.  
Desta vez, lágrimas? Só nos olhos das Irmãzinhas, mas desta vez de alegria.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Diálogo

 A Lua já não era visível.As estrelas confundiam-se com a claridade do alvorecer, amanhecia. O sol subia no horizonte e afagava os ornatos superiores do maior edifício de Montemor-o-Velho - os Paços do Concelho. O sol chamou-lhe Palácio e enquanto o acariciava com o seu calor e despertava para mais um dia, disse-lhe:

- Sabes Palácio, tenho pressa em iluminar-te, sabes porquê?
- Não, diz-me...
- Porque és bonito! És um Palácio soberbo!
- Gosto do galanteio - retorquiu - eu já tenho muitos anos, estou de pé desde 1892. Já vivi muito, tenho muitas recordações, boas, menos boas e, saudades. Mas os teus elogios não apagam as minhas mágoas...
- Mágoas? Tu?! - inquiriu o sol - queres desabafar?
O grande palácio, um tanto austero, tomou então da palavra com uma calma triste:
- Esta Praça, que se chama da Républica, está mais desolada que um largo duma pequena aldeia remota. E no entanto, tem um desenho tão belo, dela até se vê o Castelo, que é a coroa da Vila ! Mas tão árida, nem uma flor, ou folha verde, nem uns jactos d’água que a enfeitem, nem população, é apenas um Largo, que tristeza...
- Ora, Palácio, são os efeitos da crise, que há-de terminar... Não! O que te digo é anterior à crise. Sou velho mas ainda consigo destrinçar. Aos domingos e dias feriados esta Praça é sinistra de tão vazia. Nem calculas a tristeza que me invade nesses dias. Nem um restaurante, nem um café aberto...Lembra um suicídio colectivo, um êxodo total! É então que na minha solidão recordo o passado, quando os bancos à minha porta eram poucos para os trabalhadores que aí se sentavam para descansar e conversar, nas tardes de domingo! Nos passeios que me contornam, acomodavam-se também as mulheres que vendiam tremoços e castanhas, e os engraxadores com a respectiva caixa para o seu trabalho. Formavam-se grupos, que falavam, havia vida... No café Girão, pequeno mas acolhedor, os homens preguiçavam na explanada sobre o passeio, enquanto o empregado, (o Manel do Café) impecável no seu casaco branco e no seu trato, os servia incansável.  Mesmo na minha frente, o Café Mondego, pequenino, o Café do Henrique, o inventor das Espigas Doces, essa delicia!
- Um inventor? Em Montemor?
- Há! Sim, ele devia ter lido o Fernando Pessoa - "quando Deus quer, o homem sonha, a obra nasce!" Sonhou e tornou realidade um doce para Montemor, como era então conhecido. Que saudades desses tempos. O meu coração de velho não esquece, e agora nada me alegra...
- Queria animar-te, meu amigo. Mas as minhas histórias são iguais às tuas. Como sabes, eu, um amigo dos turistas, vi há tempos um carro cheio deles quedar-se à entrada da Vila para as fotografias da praxe ao magnífico Castelo. Depois dirigiram-se para o centro da Vila. Era Domingo e tudo estava fechado. Deram meia volta. Segui-os num dos meus raios até Tentúgal, onde se sentaram a uma mesa de café a saborear pastéis e queijadas.
- Não digas mais...
- Voltas amanhã?
- Claro, todos os dias!
- Mas promete-me uma história mais feliz....