sábado, 30 de outubro de 2021

Regresso por de mais tardio

 Não  só as conversas são como as cerejas, com as recordações também é um pouco assim.  

Foi num Domingo de Agosto. O sol começava a despontar, o dia ia estar quente e ir á praia era o sonho acalentado durante toda a semana.  Carro próprio era um  luxo de poucos, excepção apenas para quem o veículo era mesmo necessário por motivo profissional; mas havia a camionete da carreira.  A Empresa de camionagem Moisés Correia de Oliveira sediada na Carapinheira, assegurava a ligação diária de ida e volta entre Tentúgal e Figueira  da Foz. 
Aos Domingos havia desdobramento, era o termo usado para informar do reforço doutro autocarro que vinha logo após, já na certeza de que no primeiro não haveria lugar para toda a gente que estava na beira da estrada, nas paragens à espera. A empresa tinha dois ou três autocarros novos, maiores e barulhentos que bastava, e outros arrumados por velhice, mas aos Domingos, estes vinham também para a estrada com a palavra "Desdobramento" bem visível no vidro da frente.   Mesmo assim, não ficou para a história qualquer noticia de acidente.
E neste dia manhã cedinho as pessoas já formavam grupos na Praça da Republica enquanto esperavam. Ali estava gente de todas as idades, gente animada  todos com igual expectativa, a de viverem um dia diferente.  Cêstos no chão ao redor, bem cheios com o farnel, que o mar faz fome (assim diziam) esperando a camionete que as levaria até à Figueira para a praia, e a alguns homens para a tourada que ia haver nesse dia. 
O meu pai que ia para a pesca, e a minha mãe e eu que íamos para a praia embarcámos na primeira camionete (uma das tais mais novas) assim como as outras pessoas que ali estavam. O autocarro ficou logo lotado e o motorista seguiu o seu rumo sem parar. Ao aproximar-se das paragens diminuia a velocidade e com a mão fazia sinal aos passageiros que vinha aí o desdobramento. Só parámos para sair já na Figueira, encantadas com a rapidez da viagem. Até aqui tudo bem, na praia idem, idem;  enfim, um Domingo em beleza. O pior ainda estava para vir ao fim da tarde. 
Dirijimo-nos para o local da partida, era na Praça Velha  ainda não havia Terminal Rodoviário. Entretanto começavam a chegar os respectivos passageiros. Mas quais respectivos? Aquilo era um mar de gente que não parava de crescer. Estava já na hora de partir e a camionete  ainda não estava ali. Passou uma hora, todos pensávamos que não viria só uma, mas várias. Puro engano!  Veio só uma, e das velhas...!Algumas pessoas precipitaram-se aos empurrões e entraram. O motorista fechou logo as portas e informou pela janela, que voltava depois de ir levar aqueles passageiros, e arrancou. E ali ficou aquela multidão à espera. O tempo corria lento, já era noite fechada, a Praça mal iluminada, não se via ali ninguém da Figueira e o café ali existente já tinha fechado, os rebatos das casas e as  bordas do passeio serviram-nos de assento. Entretanto a camionete ia e voltava, o espectáculo era desolador, ninguém reparava em ninguém, era entrar à fôrça e de encontrão fôsse de que maneira fôsse, e logo a porta se fechava e de novo a camionete partia deixando para trás tanta gente ainda. E de novo  voltava, sei lá quantas vezes foi... Os ânimos começaram a exaltar-se, e a certa altura num dos momentos de mais um embarque, ouvimos alguém que gritava "anda aqui bulha, andam à pancada dentro da camionete, abra a porta quero sair daqui..." Pela janela atiraram umas ripas de madeira que havia pregadas no chão... Logo de seguida o motorista aflito deixou a camionete e foi a correr chamar a polícia que ficava sediada ali perto. E a policia veio.... mas já estava tudo calmo, o motorista retomou o volante  e a camionete lá se sumiu mais uma vez na escuridão. Ainda não foi nesta que tivemos lugar.
Não foram minutos, foram horas que ali estivemos à espera! Agora já falo de mim e dos meus, embarcámos era meia-noite, com os últimos passageiros na última camionete, já nem falávamos, nem sequer para nos lamentarmos ou recordarmos o que foi bom naquele dia, enquanto o sol brilhou. 
Mas ficou a recordação deste regresso atribulado, que passado algum tempo já nos fazia sorrir!

Água-Benta falsificada

 O Domingo de Páscoa em Montemor-o-Velho era um pouco diferente dos outros Domingos, no que refere às práticas religiosas. A Missa era celebrada mais cêdo, para que o Padre figura principal da comitiva, iniciásse a visita Pascal logo após, ganhando tempo para visitar todas as casa da Vila até à noite.

As residências já tinham beneficiado de limpeza intensa para receberem o Senhor Crucificado. Era colocada verdura e rosmaninho em flôr, no chão na entrada das portas que eram abertas de par em par. Em cima da mesa na sala lá estava o Folár para o Sr. Reitor. Num prato uma laranja grande com uma moeda em cima, era a oferta dos menos ricos que eram na verdade a maior parte. Os mais remediados optávam por uma nota de alguns escudos arrumada num envelope branco, e outros (poucos) juntavam também um cartucho de amêndoas. (um cartucho de papel feito pelo merceeiro)
A comitiva Pascal integrava o Homem que levava  o Crucifixo, mais outro com uma saca de brocado de côr carmim para carregar as laranjas, mais dois acompanhantes, e o homem dos foguetes. (este raro entrava, a menos que o chamassem para  um copito de vinho doce e uma fatia de bolo, do tradicional bolo da Páscoa) E havia mais dois personagens importantes (mais novos) o rapaz da Campaínha que freneticamente a accionava e aquelas badaladas ouviam-se à distância, sendo o modo de anunciar que o Padre já vinha perto, e o rapaz da Caldeirinha, uma espécie de balde de metal amarelo (luzidio nessa ocasião) onde era colocado o aspersor e a Água-Benta proveniente da Pia Baptismal e que havia sido benzida para o efeito.
Este grupo de voluntários disponibilizava-se para ir levar o Senhor a beijar, ás famílias crentes e eram todas, que não prescindiam desta cerimónia e a aguardavam ano após ano. 
Entravam nas residências, o homem da Cruz aproximava-se e o Padre dava o Senhor a beijar, primeiro ao pai e à mãe e de seguida a todos os que ali estavam reúnidos e ajoelhados respeitosamente. Aspergia água benta sobre os presentes, sobre a casa, felicitava, repetia Aleluias... havia sorrisos, havia alegria e votos de felicidades até ao ano na despedida.
Numa destas festas da Páscoa com tudo organizado, saiu a Comitiva da Igreja para dar inicio à costumada visita Pascal e já tinham entrado em muitas casas, iam animados, longe de pensarem em algum percalço, mas aconteceu; o rapaz da Caldeirinha escorregou nas pedras da rua e caiu. A Caldeirinha rolou no chão entornando a água toda. Gerou-se natural preocupação com o rapaz, mas logo passou pois ele não se tinha magoado e estava pronto a retomar. Mas faltava a Água Benta. Prestável como são todos os miúdos, logo se ofereceu para ir à Igreja buscar a preciosa água. Concordaram em esperar ali, enquanto ele numa corrida lá ia e voltava num instante. E ele lá foi apressado, mas a certa altura achou que ir à Igreja e vir era demasiado, então olhou à volta não estivesse alguém a ver, e cauteloso acercou-se da margem da Vala que existia na Vila, pôs um joelho no chão estendeu o braço e mergulhou a Caldeirinha. Atestada com o precioso liquido, limpou-a por fora com o lenço e, em passo normal reuniu-se á comitiva que o aguardava sorridente e lhe dispensou elogios.  
E lá andou todo o dia no cumprimento da sua missão, no entanto apreensivo, porque de vez em quando o pensamento lhe trazia um terrível receio, " E SE O PADRE CONHECE A  ÁGUA????? "

(também este texto é baseado num caso verídico, passado há cem anos)


sábado, 2 de outubro de 2021

O desejo do peixe...

 Foi há muito tempo. Fim dos anos trinta.


Era verão, e na quinta do Taipal em Montemor -o-Velho era grande  a azáfama nos trabalhos do arroz. Naquela tarde, aquele rancho de raparigas e mulheres mais velhas iam voltar a entrar na marinha retomando o trabalho, depois de terem enganado o estômago com pouco mais do que uma bucha e passado pelo sono, deitadas ali perto no chão agora duro e seco.
Uma delas adiantou-se e reparou que se aproximava um trabalhador com uma vêrga na mão cheia de peixes enfiados, luzidios, frescos... Alegremente, perguntou-lhe em jeito de certeza "foi ao peixe e trás muitos vai dar-me um peixe, não vai? " Êle carrancudo replicou "você esteve a dormir a sésta não esteve? " Ela assentiu, sorrindo. " Pois, enquanto você esteve a dormir eu andei na barroca a apanhar os peixes. "E seguiu caminho a acomodar a pescaria para depois também ele ir "ferrar" ao trabalho.
A tarefa recomeçou para todo o rancho, e algumas môças cantavam ao desafio, mas daí a pouco repararam que a Alice trabalhava mas, em silêncio estava a chorar. Com preocupação acercaram-se logo para saberem o porquê, mas ela algo envergonha evitava dizer a causa daquela tristeza que não conseguia dominar. Porém, as mulheres mais velhas, sábias pelas agruras da vida logo adivinharam... quem sabe se não o sabiam por experiência própria, eram tempos de pouco dinheiro, de comida magra e pouca. O organismo humano fálho de vitaminas, nestes casos, reage e aparecem os desejos incontroláveis tão conhecidos, na gente pobre... ela esperava um bébé estava á vista este desiquilibrio nervoso. Uma delas penalizada falou-lhe baixinho, "a Alice está a chorar por causa do peixe"... não, respondeu ela. "Está, está, e logo o meu homem está preso, se não, ele ia ao peixe e eu dava-lhe." O homem dela era pescador no rio, um bom homem, mas bebia e batia-lhe, ela gritava e a guarda ia e prendia-o, e no dia seguinte libertava-o. Outra companheira indignada dirigiu-se ao bruto como ela lhe chamou e avisou-o, se acontecer algum mal à rapariga somos todas testemunhas e vamos denunciá-lo na G.N.R. O dia terminou e com as companheiras ela regressou à aldeia que ficava distante da Vila, mas ao deixar a Quinta voltou o chôro. Então a prima Nazaré ofereceu, "olha lá Alice e se tu bebesses um copito de aguardente?,,, eu pago, vamos ali à taberna da leiteira" era uma tasca quase imunda situada à beira da estrada perto de Quinhendros. Ela não aceitou, mas riu-se, o que já foi um progresso.