sábado, 30 de outubro de 2021

Água-Benta falsificada

 O Domingo de Páscoa em Montemor-o-Velho era um pouco diferente dos outros Domingos, no que refere às práticas religiosas. A Missa era celebrada mais cêdo, para que o Padre figura principal da comitiva, iniciásse a visita Pascal logo após, ganhando tempo para visitar todas as casa da Vila até à noite.

As residências já tinham beneficiado de limpeza intensa para receberem o Senhor Crucificado. Era colocada verdura e rosmaninho em flôr, no chão na entrada das portas que eram abertas de par em par. Em cima da mesa na sala lá estava o Folár para o Sr. Reitor. Num prato uma laranja grande com uma moeda em cima, era a oferta dos menos ricos que eram na verdade a maior parte. Os mais remediados optávam por uma nota de alguns escudos arrumada num envelope branco, e outros (poucos) juntavam também um cartucho de amêndoas. (um cartucho de papel feito pelo merceeiro)
A comitiva Pascal integrava o Homem que levava  o Crucifixo, mais outro com uma saca de brocado de côr carmim para carregar as laranjas, mais dois acompanhantes, e o homem dos foguetes. (este raro entrava, a menos que o chamassem para  um copito de vinho doce e uma fatia de bolo, do tradicional bolo da Páscoa) E havia mais dois personagens importantes (mais novos) o rapaz da Campaínha que freneticamente a accionava e aquelas badaladas ouviam-se à distância, sendo o modo de anunciar que o Padre já vinha perto, e o rapaz da Caldeirinha, uma espécie de balde de metal amarelo (luzidio nessa ocasião) onde era colocado o aspersor e a Água-Benta proveniente da Pia Baptismal e que havia sido benzida para o efeito.
Este grupo de voluntários disponibilizava-se para ir levar o Senhor a beijar, ás famílias crentes e eram todas, que não prescindiam desta cerimónia e a aguardavam ano após ano. 
Entravam nas residências, o homem da Cruz aproximava-se e o Padre dava o Senhor a beijar, primeiro ao pai e à mãe e de seguida a todos os que ali estavam reúnidos e ajoelhados respeitosamente. Aspergia água benta sobre os presentes, sobre a casa, felicitava, repetia Aleluias... havia sorrisos, havia alegria e votos de felicidades até ao ano na despedida.
Numa destas festas da Páscoa com tudo organizado, saiu a Comitiva da Igreja para dar inicio à costumada visita Pascal e já tinham entrado em muitas casas, iam animados, longe de pensarem em algum percalço, mas aconteceu; o rapaz da Caldeirinha escorregou nas pedras da rua e caiu. A Caldeirinha rolou no chão entornando a água toda. Gerou-se natural preocupação com o rapaz, mas logo passou pois ele não se tinha magoado e estava pronto a retomar. Mas faltava a Água Benta. Prestável como são todos os miúdos, logo se ofereceu para ir à Igreja buscar a preciosa água. Concordaram em esperar ali, enquanto ele numa corrida lá ia e voltava num instante. E ele lá foi apressado, mas a certa altura achou que ir à Igreja e vir era demasiado, então olhou à volta não estivesse alguém a ver, e cauteloso acercou-se da margem da Vala que existia na Vila, pôs um joelho no chão estendeu o braço e mergulhou a Caldeirinha. Atestada com o precioso liquido, limpou-a por fora com o lenço e, em passo normal reuniu-se á comitiva que o aguardava sorridente e lhe dispensou elogios.  
E lá andou todo o dia no cumprimento da sua missão, no entanto apreensivo, porque de vez em quando o pensamento lhe trazia um terrível receio, " E SE O PADRE CONHECE A  ÁGUA????? "

(também este texto é baseado num caso verídico, passado há cem anos)


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