segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Outros tempos

 Naquele Setembro no fim dos anos cinquenta, as festas da Feira Anual só terminaram no dia vinte cinco, dia do aniversário da Filarmónica. Havia um espaço no Largo da Feira delimitado para as festas, por uma estrutura de madeira pintada e decorada com  balões e pares a dançar de braços no ar. Tinha duas bilheteiras, porque era necessário pagar um bilhete para entrar. 

Findas as festas era tudo desmontado e guardado para o ano seguinte, para os bailes de São João e São Pedro em Junho e em Setembro para as Festas da Vila a tradicional Feira do Ano. 
Foi novidade o prolongamento até este dia, e também o facto do baile acontecer da parte da tarde. 
E assim pelas dezasseis horas já se ouvia o Tivoli-Jaz a iniciar a dança com o habitual passo-doble. O recinto também estava composto de gente, um baile era uma festa e ninguém queria faltar. E lá estavam sentadas as mães, que acompanhavam sempre as filhas, alguns pais também apareciam e juntavam-se em grupo aqui e ali, para conversarem e irem beber um copo de tinto ou um de igual capacidade mas de café.
A  Milena que era de Lisboa e estava de férias em casa das primas em Montemor, juntou-se à Lita. Quando nenhum rapaz as vinha buscar para dançar, dançavam as duas, mas era comum aproximarem-se dois rapazes que perguntavam "se queriam partir." Se queriam, aceitavam-nos para dançar, se não queriam, diziam não e era não.
Pelo fim da tarde entraram dois rapazes no recinto, a Lita viu-os e até reparou num dêles, mas não disse nada. Daí a pouco quando as duas dançavam, a Milena disse-lhe "olhe estão a dizer se queremos partir..." A Lita disse que sim, até  era aquele em que ela tinha reparado, que estava agora colocado para dançar com ela... Ele era mais alto, e assim não foi possível a ela observar-lhe a fisionomia; tinha um bom fato de tom pastel, camisa branca e gravata. Reparou na mão de pele clara, unhas cortadas limpas, um anel modesto de pedra azul num dos dedos. Dançaram duas vezes ele nada disse, só o habitual obrigado após dançar, e entretanto acabou o baile.
A Lita com a mãe encaminharam-se para a saída e  ela voltou a reparar naqueles dois, ali em frente no lado oposto da rua. Ele sentado numa Vespa grande, último modelo, de côr cinza metalizada, acionava o motor...     
Passados mais de dois meses numa segunda-feira perto das nove da manhã, quando a Lita se dirigia para o emprego a amiga Lurdes que já a esperava à janela do andar superior, desceu a escada à pressa e da porta chamou-a para a entrada da  casa, e disparou: - não sabe, mas você tem um apaixonado!!! Veio cá ontem, esteve com o meu namorado, lembrou-se do tempo em que ambos estudavam na Figueira, e veio ter com ele para lhe contar, e saber de si. A Lita ficou surpreendida, riu-se e perguntou, "então e quem é ele? " Obtida a informação, ainda fez que não se recordava, mas na verdade ela lembrou-se logo do rapaz com quem tinha dançado apenas duas vezes. A amiga fez-lhe o relato da conversa havida com o namorado dela e assim ficou a saber que ele já tinha 25 anos, era filho único, estava empregado, etc... bem, ficou logo com parte do historial  do tal apaixonado. Ele passou a ir a Montemor nas tardes todas de Domingo até ao Natal, mas nunca a via. Naquela altura os rapazes não se acercavam facilmente das raparigas, e ela aos Domingos só saia para ir à missa das onze, e de tarde passava o tempo a ler, ou a fazer renda. Depois na segunda-feira a amiga contava-lhe. E foi por ela que soube que iria receber uma carta no dia seguinte. Era um cartão grande de Boas-Festas perfumado e bonito, e numa caligrafia perfeita e bom português um pedido de namoro. (namoro daquele tempo,,, não a situação a que hoje chamam de namoro) 
Era hábito na tarde de Natal e na de Ano Novo as pessoas saírem de casa para visitar o Presépio na Capela do Hospital, e passearem estrada acima até à Sra. do Destêrro. Chegou assim a oportunidade de se encontrarem no dia de Ano Novo. Ela foi passear com a Lurdes, e eles apareceram como estava combinado, o Tó fez as apresentações, e com a namorada ao lado caminhou a diante, e eles seguiram-nos em passo lento. Passadas as banalidades de inicio de conversa, ele assumiu o assunto que ali o levara, disse-lhe que não era rico, era ferroviário, tinha deixado de estudar e também tinha sido leviano, até mesmo estróina, e também tinha tido uma namorada com quem estivera para casar, mas que tudo isso era passado e sem retorno. Ela ouvia-o com atenção  e agradou-lhe aquela franqueza, gostou de passear ao seu lado, mas não lhe quis dizer que o aceitava para namorar, no entanto prometeu que lhe responderia. Despediram-se; eles ficaram para trás, ela e a Lurdes continuaram o passeio agora de regresso a casa. Nessa altura ela voltou-se para a amiga e disse-lhe, "ele é elegante e simpático, mas é danado feio,,, parece o Antoine Quine." A amiga disse que não, mas era. 
Daí a dias começou "a guerra." Naquela altura os pais mandavam, e o pai da Lita que quando soube tinha ficado na expectativa, agora manifestou-se pela negativa, tinha sabido umas informações e disse-lhe que não aceitasse. Daí a uns dias a Lita recebeu uma carta dando-lhe conta do que se passava em casa dele, nem o pai nem a mãe queriam tal namoro, e havia ralhos constantes, mas ele estava disposto a enfrentar a situação, só queria saber o que ela tinha decidido...     
E os dois sem se verem mais, escreveram cartas assiduamente durante meses, até ao dia em que o pai da Lita soube da correspondência; ai, ai, ai, a Lita viu cair o Carmo e a Trindade... 
Bem, mas uma vez que o pai já sabia, ele decidiu escrever-lhe a pedir que o recebêsse porque queria falar com ele. Era costume o rapaz pedir ao pai da rapariga ordem para namorar. (à janela ou à porta, namorar em casa era só mais adiante...)
Com muito pouca vontade o pai acedeu, ouviu-o e até simpatizou com ele. Finalmente havia ordem para namorar, mas também alguns  deveres a observar. Era só aos Domingos de tarde e à noite, e às quintas feiras à noite, mas  em qualquer dos dias só até às nove horas, que era boa hora de recolher. 
Era moda os namorados trocarem alianças. Chamavam-se alianças de comprometidos, o que mostrava a quem via a dita cuja a brilhar no dedo, que aquela ou aquele jovem tinha namorado. Eram bonitas, grossinhas, de prata, adornadas a espaços, com umas flores de liz em ouro, ou douradas apenas. No interior gravadas, as iniciais dos respectivos nomes. Eles também trocaram as alianças. Mas foi a partir da "autorização" que o namoro caminhou para o fim, e não demorou muito.           
Começaram a namorar à janela do rés do chão, ela de pé no lado de dentro e ele do lado de fora sentado na tal vespa último modelo. Na esperança de vida melhor ele voltou aos estudos, à noite, e manteve o emprego. Era no principio e parecia que tudo estava côr de rosa, mas nem tudo quanto luz é oiro... Ás vezes ele fazia alusão ao casamento, e a Lita dizia não ter pressa, mas a verdade é que ela começou a têr mêdo do futuro ao lado dele. De vez em quando chegavam-lhe noticias nada agradáveis quanto ao comportamento dele, e ela não queria acreditar, mas ficava preocupada, e até uma Sra. idónea e pessoa de bem lhe disse com todas as letras "que ela ia ser uma desgraçada se casásse com ele..." 
Já era inverno, mas a tarde estava ensolarada e a Lita esperava pelo namorado, esperou, esperou, mas ele só veio à noite, deu uma vaga desculpa, mas o pior é que nos Domingos seguintes continuou a fazer igual.  
Naquela altura as inundações na Vila eram frequentes nos fins do Outono e Inverno, e a zona onde a Lita morava era das primeiras a ser alagada. A água cobria a rua e entrava no rés do chão das habitações, ficava um dia ou dois, depois baixava mas permanecia na rua, só deixando sêco um espaço diminuto duns setenta centímetros no meio da via. Toda a gente tinha uma tábua comprida que colocava à porta, na horizontal, de cima do degrau até ao chão seco, era uma ponte para poder sair de casa sem passar à água, e depois correr pelo meio da rua e pedir a Deus que não viesse nenhum carro, se não houvesse "outra ponte" por perto.
Naquele Domingo seriam sete horas, mas era noite fechada e a Lita recolheu a tábua. Ele chegou daí a pouco e como de costume a Lita chegou à janela; ele do meio da rua disse-lhe, "hoje é que isto está bonito, vou precisar dum telefone..." 
Estava especado a olhar e continuou, "então eu não posso ir para ali prá porta?" E ela com muita calma respondeu-lhe:- Não! Tivesses vindo mais cêdo! A tarde foi bem comprida! Sucederam mais umas trocas de palavras e ele dizendo-se ofendido, afirmou "então vou-me embora! Também não preciso disto!" Ao que ela corroborou; vai, vai ! Vai para onde estiveste durante a tarde! Olha, Vai e não voltes! Ele caminhou rua fora e ela fechou a janela e subiu as escadas a correr, entrou no quarto sentou-se na borda cama e desatou a chorar. Daí a pouco perguntou a si própria se estava a chorar com pena, ou com raiva? E o choro acabou. 
E a água secou, e a rua também, e numa tarde de sol ele voltou! Mas não encontrou a Lita... Encontrou uma carta a ele endereçada com meia dúzia de palavras dela. "Faz a vontade aos teus pais, e que sejas muito feliz"  Adeus. 
 

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