sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quem ainda se recordará?

Sereno corre o Mondego
Sem fadigas nem canseiras,
Beijando muito em segredo
As pernas ás lavadeiras

Assim são os namorados
Por essas estradas fora,
Sorridentes, descuidados,
Beijando-se a toda a hora.

Amor, amor, bem pouco duras,
És um rosário, só d'amarguras...
És um tormento, és um desejo,
Nasces dum sonho, morres num beijo!

Hoje quase sem dar por tal, achei-me a cantar estes versos... Aprendi-os com o meu pai, que os recordava duma récita de amadores, na qual tinha participado ainda relativamente jovem, onde fazia o papel do barqueiro, de vara na mão fingindo impulsionar  o barco que deslisava lento no palco entre salgueiros, simulando o rio Mondego. Durante "a travessia" ele cantava uma linda melodia, esta ode, ao rio, ás raparigas lavadeiras e ao amor.
Eu vim muito mais tarde, de modo que só imagino a cena, por ele contada muitas vezes.

Estou a falar da minha terra, Montemor-o-Velho, e do rio Mondego. Actualmente o rio já não corre sereno (nem alteroso) foi desviado o seu curso, não sei se era inevitável esta alteração tão drástica, só sei que tenho pena do nosso rio, e não sou eu a única.
Ainda me lembro de nele navegarem as grandes barcas, que vinham de Penacova, e o barco do sal que era do Casal Novo do Rio, e  que vinha buscar aquele tempero à Figueira da Foz, (minha actual cidade) para  depois ser  vendido a miúdo  ás gentes da Vila e dos arredores. O Mondego era navegável nessa altura numa enorme extensão, e tinha peixe, bom peixe, e os pescadores tinham cada um a sua bateira  (barco de madeira de fundo chato) e faziam-se à pesca e dessa faina sustentavam a sua família. Viviam humildemente, mas bastavam-se a si próprios, e eram honestos.

Na margem esquerda o rio corria encostado aos campos, tinha choupos de grande porte, e outras árvores, onde se abrigavam as aves. Pela manhã cedinho eram os passarinhos, que cheios de vida quebravam o silêncio com os seus  trinados ainda antes do nascer do sol.
Na margem direita era  areal, nuns locais areia mais fina, noutros nem tanto, mas areia e não terra, e também alguns tufos de salgueiros.
Toda a gente lavava no rio - e havia as lavadeiras de profissão. Formavam-se grupos que adoptavam locais, e fixavam lugares respectivos e pedras onde lavavam, determinação  respeitada  entre todas.

As pessoas eram alegres e cantavam muito, enquanto as mãos trabalhavam na lavagem das roupas, e quando se juntavam raparigas havia brincadeira quase sempre.

De vez em quando, faziam uma espécie de prova de resistência que, "pasme-se," consistia  em abrir uma cova grande no areal onde coubesse uma rapariga. Depois  ela embrulhava-se num dos lençóis que tinha para lavar, e deitava-se na cova, na horisontal. De seguida as outras cobriam-na com uma camada de areia de forma a ficar completamente tapada. E chegava o momento importante - era ela cantar uma cançoneta que já tinham escolhido. Uma a seguir a outra todas faziam a prova, e quem cantásse mais alto e melhor, era a vitoriosa. Gostavam de ouvir aquela voz vinda do chão...Para as pessoas mais velhas aquilo era uma aflição, mas para as jovens, era só risos.

Até ao dia em que a brincadeira ficou na história: - iniciaram-se os preparativos como de costume entre vozes e risadas, até a moça ficar "enterrada." Em voz alta ouviu-se então a ordem: - Vá, agora canta!  Canta! Canta! - exclamaram em coro. Mas ela não cantou. Repetiram a ordem, e nada, só silêncio e agora já aterrador.

Então a aflição generalizou-se... todas as mulheres saíram da água e correram em socorro.
-Desenterrem-na depressa ! - gritavam, já em lágrimas algumas das presentes, receando o pior. A união faz a força, e em poucos segundos a areia estava retirada  e o lençol à vista.
- Ao menos fala! Fala, diz alguma coisa! - pediam ansiosas as companheiras da brincadeira...
Porém ela continuava calada e imóvel.
Impotentes, desataram aos gritos, enquanto as mais velhas rezavam baixinho...
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A juventude sempre foi irreverente, e até insensata por ingenuidade.

"Já chegava, pensou ela talvez" - e uma forte gargalhada vinda de dentro do lençol, soou no meio daquela gente angustiada.
De seguida afastou o lençol, e a rir, a rir, começou a levantar-se, o que não aconteceu, porque uma das lavadeiras na ânsia de acudir, e sem se aperceber que a situação já tinha mudado, correu para ela com uma bacia que tinha ido encher ao rio, e atirou-lhe com toda a água que continha; e ela com o impacto caiu de novo na cova.

A cena, por momentos tornou-se hilariante, não fosse o facto da "lavadeira socorrista" ter desmaiado em seguida...
Mas tudo está bem, quando acaba bem, e foi o caso. Ressentimento era palavra e acto que ninguém ali acalentava.

        Era assim o Rio Mondego em Montemor -o- Velho em 1957
                        E eu também era assim, um pouco antes...




terça-feira, 18 de agosto de 2015

Os velhotes, o passeio, e as sardinhas da Nazaré

E então foi assim: - Era uma vez, dois velhotes que no passado sábado, feriado nacional, resolveram "fugir de casa" sem destino certo. Irem por aí abaixo, ou por aí acima, era indiferente, o essencial era ir.
Pararam na bomba de gasolina para alimentar o veículo, e depois motor a trabalhar viraram para sul. Foram para perto, grandes vôos não convinham... rumaram à Nazaré mais uma vez, a juntar a tantas outras vezes que ali estiveram.
Mas optaram por passear no Sítio, lá no alto, naquele local onde se diz ter acontecido o milagre que salvou da morte o D. Fuas Roupinho.
Diz-se que o cavalo galopava atrás duma corsa, ou veado, sem que o cavaleiro se apercebesse ou soubesse, que a enorme rocha de chão firme acabava  ali, e para além era o vácuo, o abismo do mar imenso a mais de cem metros abaixo...
Na eminência de cair ao mar, numa fração de segundo, o fidalgo gritou por Nossa Senhora, e o cavalo estacou.
Na rocha enegrecida, ainda à poucos anos era visivel uma pequena cova, simulando o feitio duma pata de cavalo, que atribuiam ao cavalo que estacou no limite do precipicio.
Existe uma Capelinha, chamada da Memória, que D. Fuas mandou erigir em 1182, como eterno agradecimento, e também para perpéctuar o milagre que o salvou.

Em terras de santidade, os milagres podem suceder-se :  -  então eles, os velhotes, ainda se atreveram a arrumar esta quantidade de alimento?!  Se me dissessem eu nem acreditava, mas a fotografia é bem ilucidativa... Não há dúvida que passear faz bem, e a mim em especial. Temos de voltar. Para a próxima será à Pederneira, outra povoação lá no alto, mais um pedaço da Nazaré.

Retalhos da Nazaré

 A praia da Nazaré fotografada do Sítio,no alto do promontório a mais de 100 metros de altitude.
 Um pormenor do imenso casario da Nazaré, e da escada de acesso pedonal ao Sítio.
O sol escondeu-se,  deu lugar à cor cinza, e aos chuviscos. Mesmo assim é visivel um dos elevadores. Já "o colega" mais distante, mal se vê...

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

No Sítio - na Nazaré

 Estarão de mal um com o outro? Tão calmos e tão distantes. Nem só um olhar entre si...
 As Nazarenas sempre teceram lindas rendas, esta cortina confirma o que sabemos.
Uma porta de entrada duma casinha lá no alto, no Sítio da Nazaré. Característico o conjunto, a porta de madeira escura com postigo, a aldraba (batente) e as barras pintadas de amarelo, em contraste com as paredes brancas.
Derresto lá no Sítio, tudo é diferente, ruas estreitinhas, largos floridos, e a paisagem enorme a perder de vista...

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Desabafo

O dia caminhava para o fim,ainda havia muito sol mas  na varanda já estava sombra, encaminhei-me para lá -  a temperatura agradável convidava a ali permanecer...  olhei ao redor, e observei o panorama mais uma vez. E pensei, como é bonito o que daqui a minha vista alcança; contudo é raro eu vir a esta varanda, como tenho também uma janela na mesma divisão, até me esqueço... Resolvi ficar até ver chegar o meu marido. O transito começava a aumentar, fruto do regresso a casa, de quem trabalhou fora todo o dia. Os semáforos caprichosos impunham regras, e os automobilistas acatavam, pois, nem outra coisa era de esperar.
Entretanto comecei a ouvir umas vozes de insatisfação, em baixo frente ao portão das garagens. Dada a altura a que eu estava situada, a principio não entendia o que diziam.

Mas não tardou  percebi - era um carro estacionado indevidamente, que impedia o acesso ou a saída das garagens. Está lá fixado na parede e bem visivel o sinal proibitivo  de estacionamento - mas quem nunca prevaricou, por distração, que atire a primeira pedra...

Há aqui um salão de cabeleireiro, e de vez em quando lá aparece uma cliente apressada que nem olha para a parede e arruma o carro ali, pois está tão a jeito... Depois com o barulho dos secadores não dá conta de nada, e quando regressa já o reboque trabalhou...

E desta vez a coisa estava a encaminhar-se nesse sentido, mas só de ameaças ainda, quando a criatura aparece e calmamente se dirije ao carro impávida e serena...
A D. Rosa dirigiu-lhe umas palavras de censura, feiosas, mas ela ligou a ignição e partiu sem uma palavra.

Apenas com uns segundos de diferença, e atrás dela saiu outra cliente, esta apressada - tinha o carro um pouco mais adiante e em local normal. Ligou a ignição e iniciou a marcha devagar para sair do estacionamento. Então a D. Rosa começa a acusá-la - ela parou e respondeu-lhe que não tinha nada a ver com a transgressão da outra senhora, e que nem a conhecia... E que tinha estacionado o seu carro no parque em lugar devido, nada havia para reparo. Dito isto, avança para a estrada, mas pára de novo e sai do carro, porque a D. Rosa continuava a maltratá-la com palavras, em voz cada vez mais alta. Gera-se uma discussão entre as duas, quase cara a cara. Confesso que receei que fossem mais além. O dono duma loja situada ao lado  do portão veio falar com elas, e colocando-se quase entre ambas, serenou um pouco os ânimos, e entretanto a senhora voltou ao carro e foi embora.

Eu cá de cima, muito  acima, sem que ninguém reparásse em mim, assisti a este triste espetáculo, e embora sem ouvir na integra tudo o que disseram, o que vi e ouvi, chegou para entender que nem sempre "estamos" livres de nos incomodarmos.

E também acho que a maldade humana anda exacerbada, não de modo generalizado, mas existe, e faz estragos. Fiquei com a desconfiança que aqui houve um gosto de embirrar por embirrar, porque eu não vi a D. Rosa usar a garagem após o incidente. Pelo contrário, vi-a a caminhar a pé.
Para quê então esta provocação? E, pior, dirigida a quem não tinha transgredido.
Eu não queria chegar a esta conclusão, mas...

Embora alheia a tudo isto, posteriormente não me livrei de ocupar a mente com este episódio tão feio,
ao qual eu preferia não ter assistido - devia ter voltado as costas antes do fim...