sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Cá se Fazem,

O Dr. Gustavo atravessou a rua e parou a olhar para o hospital, aonde trabalhava. Formou-se em medicina na Universidade do Porto, e depois do estágio, sentiu-se atraído por África, e foi para Lourenço Marques.
Agora olhava para aquele hospital aonde era feliz, e sabia que iria sentir saudades. Tinha passado ali mais de dez anos... Mas  não podia ali continuar, queria ir para longe, para um local onde não fosse conhecido;  tinha de ser. Por isso em breve iria recomeçar a sua vida noutro estabelecimento de saúde, mas na África do Sul; estava decidido, era só questão de tempo.
Há meses que sofria em silêncio, enraivecido, mas também  magoado... no entanto, calava a  todo o custo, o seu estado de alma, o seu  problema sem solução.  Ele sempre dizia que o médico deve deixar as suas preocupações do lado de fora do hospital, e entrar livre para o seu trabalho, o seu sacerdócio... E era isso que ele fazia, mas o esforço tornou-se demasiado, e nessas circunstâncias era prejudicial continuar a trabalhar, pelo que decidiu descontar uns dias de férias. E agora ali estava ele dispensado até de fazer noite, (já nessa terça feira como era hábito) e  a caminho de casa para descansar.

Já no jardim da sua moradia, reparou na  Rosy, a cozinheira, que vinha ao seu encontro, mostrando preocupação porque não esperava ter os senhores para jantar... O sr. Dr. ficava sempre nesta noite no hospital, e a sra. havia saído, e disse que não vinha jantar...  Mas que ia já tratar duma refeição, já! Já!
- O Dr., sorridente respondeu-lhe: - não tenhas pressa "minha mãe preta," eu ainda não tenho fome, tens o tempo todo, faz qualquer coisa simples, não te enerves, olha que se adoeces ainda me dás aflições... (o Dr. Gustavo tinha um enorme carinho por esta criada, e chamava-lhe a sua mãe preta.) E depois aonde é que eu encontro quem me faça os pitéus que tu fazes?!  Ela retorquiu: - Nesta casa eu não vou adoecer nunca!... e lá foi apressada rumo à cozinha.
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As horas passaram, era já madrugada, e o Dr. Gustavo sentado no sofá da sala, com uma arma  nas mãos, uma espécie de espada (tinha várias a decorar as paredes) apreciava  a arte daquela peça, com bocadinhos de marfim incrustados imitando folhas. Um trabalho efectuado pelos indígenas, artistas, nem sempre valorizados. Aquela peça fora-lhe oferecida há poucos dias por um colega.
Olhou de novo o relógio, era tarde mas ele não tinha sono. Aguardava a chegada da esposa, e sentia que mesmo sem que o tivesse  decidido, estava a chegar o momento de pôr fim aquela triste situação que o minava dia após dia. - Sim, ia ser hoje.

Apesar do adiantado da hora, Marília  caminhou devagar pelo jardim da moradia até à porta; introduziu a chave e depois de a abrir, ainda se voltou para mandar um beijo e um aceno de mão, ao homem que encostado ao carro, esperava que ela entrásse em casa. Depois de ver a porta fechada, ele entrou no carro acelerou e partiu.
Marília subiu os poucos degraus que a separavam do primeiro andar, e reparou que na sala havia luz. Ficou sobressaltada, mas foi em frente, e decidida  abriu a porta: a surpresa foi aterradora;  na sua frente estava o seu marido, agora de pé, e com uma arma na mão... ela estacou; o pânico tolheu-lhe os passos, cobriu a cara com as mãos, e um grito rouco descontrolado saiu-lhe do peito...

-Não precisas de ter medo! Disse o marido olhando para ela com dureza. Eu sou o Dr. Gustavo, sou médico. Sou pela vida, e não pela morte, e não gosto da palavra assassino para acrescentar ao meu nome.
-Nunca pensei usar esta arma, vejo-a apenas como um objecto artístico, e por isso a tinha nas mãos. Mas foi positivo ter pegado nela, se dúvidas tivesse, estariam agora dissipadas; o medo que demonstraste é bem a prova da tua culpa...
-Mas não te  vou perguntar onde, nem com quem estiveste, sei tudo, não preciso das  tuas explicações descabidas. Esse empresário deu-te volta à cabeça, e já não vês mais nada, nem ninguém, só a ele. Porquê? Porque é rico?  Talvez seja por isso; mas repara que ele não é teu marido, e o dinheiro dele não é teu; talvez um dia te detenhas a pensar nisso, mas então será  tarde de mais. Calou-se por instantes, depois continuou: - tenho assuntos importantes a comunicar-te; fica marcado para logo à tarde.
E sem dizer mais, desesperado, saiu da sala.

Marília,estava atordoada, já nem tinha a certeza se estava a viver um facto, ou um pesadelo... deixou-se cair num maple, e as lágrimas não se fizeram esperar... mas depois concluiu para si, que na verdade estava enfeitiçada pelo Alex. Não via outro Deus, como sói dizer-se.

Era meio da tarde quando o Dr Gustavo regressou a casa, e se encaminhou logo para o escritório. Não se havia sequer deitado naquela noite, e tinha saído ao nascer do sol;  vagueara primeiro pela Cidade, e depois fora tratar de várias formalidades que havia "alinhavado" durante os longos estados de insónia, de que ultimamente sofria.
Sentou-se à secretária, leu a correspondência, e chamou a Rosy para  que lhe trouxesse um copo de água, e dissesse à sra. D. Marília para vir ao escritório.

Pouco depois ela entrou, e ficou de pé...
- Senta-te, disse o marido, e de seguida  deu inicio ao que pretendia dizer: - Como deves calcular, a partir d'ontem já nada volta a ser igual, no que a nós respeita.  Estamos casados, mas esse estatuto só existe nos papeis que assinámos, em nada mais. Não sei se ainda gosto de ti, ou se me dás pena, sei sim que  não te quero a meu lado, a tua presença actualmente é - me incomoda e irritante. Mas não quero insultar-te, não sou partidário desse modo de agir; e lamento que actualmente, e até já à algum tempo a esta parte, tenhas caído nas implacáveis bocas do mundo. Sim, porque já nada disto é segredo, tu é que estás convencida disso; esqueces-te que por vezes o mundo é pequeno...
Pôs-se de pé, e abriu uma das gavetas da  secretária, da qual  retirou um envelope branco que lhe estendeu. Voltou a sentar-se, e continuou:
-Tens nesse envelope, alguns cheques para provêr ás tuas despesas imediatas. Junta todos os valores que te ofereci, jóias, vestidos, tudo o que é teu, presentes que recebeste pelo casamento, leva tudo o que quiseres, e desaparece desta casa. Tens dois dias para isso, depois não te quero ver nunca mais.
Quanto às nossas meninas, ainda bem que estão no colégio interno, não voltes lá, porque não te deixarão entrar. Eu cuidarei para que nada lhes falte.
Saber-me traído é doloroso, mas teres-te esquecido de que eras mãe, é a minha maior mágoa, lembra-te disto. E agora podes sair.
A firmeza com que Gustavo falou era cortante, e Marília não se atreveu a dizer nem uma só palavra; levantou-se, e sentindo tudo a rodar à sua volta, saiu à pressa do escritório com o envelope na mão, fechando a porta atrás de si.
A casa ficou em silêncio...
Duas grossas lágrimas deslizaram lentamente pelas faces trigueiras do Dr. Gustavo.
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Tinham passado tres anos e meio. Marília residia agora na cidade denominada Sá da Bandeira. Vencidos os remorsos e as mágoas que a atormentaram, voltou a ser feliz. O Alex não a desiludiu, àquela paixão inicial, sucedeu um grande amor, que a cada  dia se tornava mais sólido. A vida em sociedade, aquelas festas habituais em África, que ela frequentava em Lourenço Marques, foram retomadas aqui nesta cidade, onde o Alex estava muito bem relacionado, porque tinha ali a sede das suas empresas. A Saudade, mulata forte e bonita, ao serviço como ama, cuidou-lhe do bébé desde o nascimento; o Fernandinho, que agora com dois anos, era um encanto. Outras criadas estavam também ao seu serviço; Marília parecia uma rainha, uma rainha elegante e bonita.

Naquela noite, ao jantar, o Alex muito animado olhou Marília nos olhos e "disparou" : - adivinha a surpresa que eu tenho para ti, é uma coisa que tu desejas muito, ora adivinha, vá...
- Uma coisa que eu desejo muito ? Sei lá,  diz tu... ele adiantou :
- olha vamos a Portugal, já marquei para o próximo navio, será no Príncipe Perfeito que iremos viajar. A minha familia vai ficar encantada contigo e com o menino, ele está tão bonito... e com a tua família vai ser igual, vão matar as saudades todas... Marília  comoveu-se, e nem sabia se havia de acreditar...- Isso é verdade? Repete! Repete!

E a viagem aconteceu, Chegaram em bem a Lisboa. Depois, sucederam-se os bons momentos nas casas dos parentes do Alex em Cascais, a família era grande, e todos queriam a presença deles num almoço ou jantar, e  a Marília via adiar a  ida para a sua terra. Já tinha informado a família acerca da chegada a Lisboa, e que depois avisaria na altura, para contarem com eles.
Estava a ficar ansiosa, e naquela manhã foi aos correios; telefonou para o café do sr. Melo, aproveitou para o cumprimentar, e pediu para chamar a irmã, a casa ficava logo ao lado.

Teve más noticias, a mãe já idosa adoecera gravemente, algo infeccioso que estava difícil de debelar, estava mesmo em risco de vida.
De lágrimas nos olhos, disse ao Alex, que ia de imediato no primeiro combóio. Era perigoso levar o Fernandinho, assim, ficava em Cascais com a ama e com ele. Ela é que era filha, ia já, e nem sabia se não seria tarde de mais...

Chegou a tempo, a alegria por ver a filha até animou um pouco a doente, e Marília decidiu ficar, talvez a mãe recuperasse... e nessa altura então viria o Alex e a ama com o Fernandinho.

Tinham passado três semanas. Marília estava sentada junto à cama da mãe, quando ouviu bater à porta. Foi ver; era o correio;- uma carta com aviso de recepção para D. Marília, é a sra. não é? Ela confirmou. Era do Alex - que esquisito, pensou... E foi ler, mas para o seu quarto.

Um barulho estranho soou pela casa. A Irmã correu a ver o que seria e entrou no quarto - meio enrolada sobre si mesma caída no chão, estava a Marília... - o que foi isto? perguntou aflita, enquanto tentava arrastá-la para a cama; ela sem voz, apontou para a folha escrita e o envelope igualmente no chão. A irmã apanhou a carta...
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" Marília
Sei que vais sofrer. Perdoa-me, porque no coração não se manda. Sabes isso por ti própria...
Apaixonei-me sem querer pela minha prima Lena; e eu que sempre afirmei que nunca me casaria, vou casar em breve. Resolvi regressar mais cedo  a África, embarco  daqui a pouco, levo o nosso Fernandinho, deves compreender que comigo ele terá tudo, o que te seria impossível proporcionares-lhe. A ama Saudade, continurá com ele na minha casa, ele não irá sofrer, será um menino d'oiro.
Financeiramente, tu não ficas mal, aumentei o depósito da tua conta bancária.
Mando-te um beijo, sinto que não o aceitas, mas peço-te por Deus que aceites o meu pedido por um perdão que te rogo, embora saiba  que o não mereço.
Alex"                        
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Passado o grande  choque, surge sempre o momento da reflexão... Marília amargurada, voltou a ler a carta, uma e outra vez... Fechou os olhos, e alheia ao que se passava à sua volta, ela via o seu passado, em pormenor, como se fosse um filme. Pensou no marido, o Dr. Gustavo, estava a vê-lo... um homem fascinante, cheio de qualidades, e que a adorava.
-Também ela o trocou pelo Alex há quatro anos atrás... Agora é que sentia quanto isso dói...

Com as lágrimas  em catadupa a correr pelas faces, murmurou baixinho: - Alex, só o meu perdão te basta, e és um homem feliz... Que facilidade! Mas quem sou eu, para te censurar?!  Deixares-me para trás, é o meu castigo...
               "  Cá se Fazem,  Cá se Pagam ! E Eu, tenho de Pagar..."


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A confissão do Poeta

Hoje apesar da aragem fria, esteve um lindo dia de sol. Grata por esta luminosidade, ainda de manhã abri as janelas e os cortinados. O sol não se fez rogado e entrou; lentamente foi avançando e quando reparei já banhava uma fila de livros, que à falta de melhor sitio ali estão, agora como decoração. Gosto muito do sol, mas fui logo proteger os livros dando-lhes a sombra que eles merecem. Livros "são tentação", levei um comigo, sentei-me e esqueci as horas...

                               Soneto

Ser doido-alegre, que maior ventura!
Morrer vivendo p´ra além da verdade.
É tão feliz quem goza tal loucura
Quem nem na morte crê, que felicidade!

Encara, rindo, a vida que o tortura,
Sem ver na esmola, a falsa caridade,
Que bem no fundo é só vaidade pura,
Se acaso houver pureza na vaidade.

Já que não tenho, tal como preciso,
A felicidade que esse doido tem
De ver no purgatório um paraíso...

Direi, ao contemplar o seu sorriso,
Ai quem me dera ser doido também
P´ra suportar melhor quem tem juízo.

        António Aleixo

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Adeus Amigo

Eu teria talvez uns dez anos quando o meu pai me presenteou com uma máquina fotográfica, um "caxotito" com capa de plástico verde escuro, com alça para colocar ao ombro. ( Eu já aqui contei isto, assim como a aquisição posterior doutras máquinas de melhor qualidade, que ainda hoje guardo como recordações.) Funcionavam com rolos de oito fotos, e como em Montemor não havia laboratório de revelação, era em Coimbra que as películas eram reveladas e as fotografias impressas.

Isto até ao dia em que um jovem com pouco mais de vinte anos, se abalançou a trabalhar na arte da fotografia por conta própria na sua terra, a  Figueira da Foz.
Estava longe a publicidade organizada, e ele dirigiu-se a Montemor para visitar o meu Pai, que era seu primo, e dar-lhe conta da responsabilidade que tomara, pois iria começar daí a dias a trabalhar no seu pequeno estabelecimento, A Foto Liz.

O meu pai gostou de saber, desejou-lhe muito êxito, e naturalmente ficou cliente.
Eram os motoristas da camionete da carreira que traziam os nossos rolos de películas para ele tratar, e passados três ou quatro dias levavam  as fotos ; eu já estava à porta, ansiosa à espera, e eles nem paravam, atiravam pela janela. (que simplicidade...)
O tempo ia passando, e quando eu vinha à Figueira parava sempre naquele estabelecimento para um olá... Sempre me tratou por prima, estando eu até num grau familiar bastante distante para isso, o que demonstrava a estima que me dedicava.

Na altura devida convidei-o para o meu casamento, e para fazer as fotos. Ele aceitou sem reservas. Foi há muito tempo, mas recordo ainda a sua alegria a abraçar o meu pai, e sorridente a dizer para o cunhado que era o Fernando cabeleireiro e para outro amigo "vocês têm pena de não terem uma prima tão linda como eu tenho..."

Muitos anos depois viémos residir para a Figueira da Foz. Ficámos mais perto... Quando do casamento da minha filha ele esteve connosco; eu já não tinha o meu pai, mas ainda tinha aquele primo ali a meu lado, a presença amiga do único parente que restava do lado dele.

Guardo alguns trabalhos seus; algumas ampliações, e uma em especial,  a côres, de quando a fotografia era apenas a preto e branco e as côres eram aplicadas pelo fotógrafo.
Ele tornou-se um mestre também na arte da recuperação de retratos antigos, era mesmo um artista.

Um artista que ontem desapareceu para sempre. Chamava-se António Brandão Faria, partiu na viagem sem regresso, e não voltará mais à sua Foto Liz...

Encarei este facto em silêncio, mas com mágoa. Eu sei que ele apenas nos leva a dianteira, pois é caminho que nos espera a todos, mas isso não é suficiente para me alhear da triste realidade, e não sentir que perdi um amigo.


( a foto que coloquei pertence ao blog O Palhetas na Foz )