domingo, 26 de abril de 2015

A confusão do Dr. Piteira

Naquele dia logo pela manhã, o Ricardo, proprietário da Quinta do Paúl, saiu de casa e partiu a caminho da Vila. A pequena camionete uma charanga velha, enferrujada e barulhenta, teimava em não arrancar, e ele praguejava como se ela ouvisse - mas resultou, e aos solavancos lá se fez à estrada, também ela em mau estado cheia de covas. Ricardo era agricultor e administrador, da sua  pequena quinta, que havia herdado dos pais, era a menina dos seus olhos, costumava  dizer quando lhe gabavam as sementeiras. Ele trabalhava com gosto, nem o frio nem o calor o tolhiam, e encaminhou os quatro filhos no mesmo sentido. Era uma benção de Deus, serem todos rapazes. -  dizia ele - ao mesmo tempo que tirava o boné da cabeça em sinal de respeito pela entidade sagrada.
Hoje havia feira na Vila, e ele ia comprar uns utensílios para a lavoura, e umas arcas de madeira para guardar os cereais no celeiro. A colheita  ainda demorava, mas comprava já, e  ficavam a arejar para perderem o cheiro do pinho.- Não se queria esquecer de ir à mercearia, comprar bacalhau e açucar, e farinha fina. Conduzia devagar e ia pensando - Se calhar até devia comprar uns sapatos ...
Faltavam poucos dias para a festa da sua aldeia, ele tinha fé na sua Santinha, a Sra.da Piedade, e ia sempre ao Andor.
A Alzira, sua mulher, a alma mater daquela casa só de homens, esmerava-se no vestuário que eles iriam usar nesse dia, mas não só, também a comida não era deixada ao acaso, ela orientava quem para ela trabalhava, mais a mais tinham sempre visitas para jantar no dia da festa.

Ricardo, na Vila, não se prendeu em conversas, fez todas as compras que tinha apontadas na folha da agenda, e mais outras que a ideia lhe apontou - olhou o relógio, e verificou que era a hora certa. Dirigiu-se ao edificio dos Paços do Concelho, e encaminhou-se para a repartição já de si conhecida, ao encontro dos Srs. Doutores, para um abraço e o habitual convite para o jantar no dia da festa da Sra. da Piedade.
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O marido estava a demorar e Alzira não parava de olhar pela janela, pensando o pior... Mas daí a pouco o Ricardo chegou, mas a pé. A camionete tinha ficado empanada já perto da quinta, até se via lá ao longe. Era de esperar, aquilo até era um perigo - ele bem sabia, por isso nunca dava boleia a ninguém, e dizia a razão da recusa.

-Está a chegar a hora de comprar uma coisa em termos, pensava, enquanto se aproximava de casa a passos largos. - Parou, limpou o suor da testa, e murmurou a meia voz - está decidido, na  semana que vem, vou à cidade tratar da compra - é mais uma despesa, e grande, mas tem mesmo de ser... vou já  dizer a todos durante o almoço - E, entrou em casa...

-Então os Senhores vêm ? Posso mandar preparar os quartos ? - perguntou Alzira já certa do sim.
-Vêm, e vem mais outro doutor. Está lá há pouco tempo, mas achei que o devia convidar também, e ele aceitou.
Alzira ficou preocupada - sabes, o pior é para dormir...
-Nos quartos dos nossos filhos, não mexemos, e quartos de hóspedes temos só dois...
- Ora, arranja-se qualquer coisa, disse o Ricardo, afinal é só uma noite...
- Até podia ser mais do que uma, respondeu a Alzira, não é esse o caso.
Eles gostavam de ter pessoas em casa, faziam mesmo questão.
Alzira teve uma ideia - havia uma sala espaçosa, e com janela, que nunca era utilizada. Só tinha um enorme louceiro antigo, com portas de vidro, cheio de louças dos antepassados do Ricardo. Havia  mais uns móveis soltos, poucos - estava ali a solução.

No dia da festa lá apareceram os três doutores. Viram a procissão, conversaram com alguns conhecidos, e ao fim da tarde, tomaram lugar á mesa para jantarem com o Ricardo e a familia. Para o terceiro, era novidade, mas para os outros dois já era costume, e igual todos os anos. Eles gostavam do ambiente um tanto rural, e das comidas então... era o galo de cabidela, o carneiro guisado, o leitão assado, tudo produtos da quinta - aquilo era o prazer dos deuses. Fruta, queijo, bolos e doces -  vinho bom, aguardente, e café. Neste ano, também nada fugiu à regra, foi comer e beber até à hora de ir prá cama, ali mesmo ao lado.

O "iniciado", o Dr. Piteira, foi encaminhado para o seu lugar de dormida, com muitas desculpas da Alzira, porque não era um quarto, etc, etc... Também não tinham casa de banho na quinta, os outros senhores já sabiam, mas com ele sentiam-se acanhados...
-Ele declinou essas preocupações, disse que estava tudo bem, e  só tinha era de estar grato.

O mobiliário era limitado - mas a cama era boa - encostada a ela, uma pequena mesa com um candeeiro e fósforos, e do outro lado uma cadeira com um bacio em cima. Um pouco mais adiante um lavatório, toalhas branquinhas, e um jarro cheio de água, e aos pés da cama mais duas cadeiras.

Piteira deixou-se deslizar para a cama, e sentiu-se confortável naqueles lençóis de linho aromatizados com alfazema. O sono não se fez esperar. Dormiu, sonhou, e acordou um tanto aflito, sentia-se a queimar... um ardor que vinha do estômago, e parecia envolver-lhe o corpo todo.
O luar entre nuvens, entrava pela janela dando pouca claridade ao aposento.
Na mesa, ao lado do candeeiro apagado, estava um copo com água, ele tinha-o visto quando chegou.
- Vou beber um gole, pensou - talvez fique mais fresco...
Levantou-se, mas não via bem, e também não se segurava... mesmo a abanar, alcançou o copo e bebeu.
Sentou-se na borda da cama com os pés no chão, o estômago deu volta, e, sorte, ter um bacio à sua frente...
Passaram uns largos minutos - parecia-lhe estar a melhorar...
Animou-se, e daí a pouco pensou já estar mesmo bem - contudo...

Achou que seria uma vergonha, e então decidiu desfazer-se daquele conteúdo imundo.
E como? Pegar no bacio e zás, despejá-lo pela janela...
Assim pensou, assim o fez ! E depois dormiu tranquilamente.

Acordou muito cêdo, mas já o sol começava a despontar. O silêncio era absoluto, apenas cortado pelo trinado dos passarinhos nas árvores ao redor da casa, anunciando a chegada do novo dia. Piteira estava deliciado, porém...
Olhou ao redor, e constatou estarrecido que a janela era do lado esquerdo - e em frente do lado direito estava o louceiro - e não tinha vazado nada por ela - tinha sim descerrado a porta envidraçada do louceiro, e atirado duma vez, todo o vómito lá pra dentro...

E, envergonhado, sem coragem para enfrentar o Ricardo e a esposa, vestiu-se apressadamente, e em passos leves, pela calada, deixou a quinta, caminhando a pé até à estrada à procura do milagre duma boleia.


domingo, 12 de abril de 2015

A visita Pascal tão desejada...

O tempo estava enevoado. Era costume, ninguém sabia explicar esta espécie de fenómeno, que acontecia sempre na semana que antecedia a Páscoa - era mais notório  na quinta e sexta feira santa. Parecia que o tempo se associava à data da paixão e morte de Cristo, e se entristecia também.
Num destes dias era dia santo da parte da manhã, no outro da parte da tarde - as pessoas esperavam pelo fim das horas santas, para iniciarem os trabalhos de limpeza das casas, as tradicionais limpezas da Páscoa. Também para irem ao monte apanhar o rosmaninho, e outras verduras aromáticas que seriam espalhadas à entrada das residências, tapete natural por onde passaria a comitiva que vinha com o Padre dar Boas Festas e Aleluias, abençoar as casas, e dar o Senhor a beijar no Domingo de Páscoa.
Esta azafama  das vizinhas fazia entristecer a Zilda - tristeza que aumentava  no dia da festa da Ressureição, porque a própria Igreja proibia a visita Pascal na sua residência. Já era assim há alguns anos, porém, ela ainda sofria...

Neste dia, à entrada da sua casa não havia verduras, a porta estava fechada, e até as janelas com as portas interiores, semi-cerradas, davam a entender que aquela familia se tinha ausentado,
mas não... Zilda no outro lado da casa, ouvia o tilintar  da campaínha, que o sacristão abanava fortemente à porta de cada residência, e as vozes alegres das pessoas nas janelas, os foguetes que estoiravam no ar ali ao lado, e não raro caíam-lhe as lágrimas.
Depois, retomava o croché, ou pegava no ultimo romance que tinha comprado à uns dias atrás.
A filha ainda brincava com as bonecas, entretinha-se a fazer-lhe vestidos, pois nesse Domingo não tinha ordem de ir para casa das amigas e companheiras da escola.
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Agora a rua já estava em silêncio, a tarde  caminhava para o fim.

Zilda acendeu o fogão a lenha  para preparar a comida, que já estava no tempero. Canja, arroz de cabidela e frango assado com batatas à volta. Tinha feito também uma travessa de arroz doce.
Ia colocar a toalha bordada na mesa da sala, e os pratos antigos que a avó lhe deixou.
Agora sim, era a sua festa de Páscoa - tinha uma visita para jantar - era o pai da filha - ano após ano, neste dia, a sua presença era uma certeza. No fim havia sempre um vinho do Porto e um brinde - tilintavam os dois cálices e outro mais pequenininho, por voltarem a estar ali juntos na próxima Páscoa.
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No ano seguinte o Padre foi transferido, e outro veio assumir a Paróquia. Num Domingo que antecedia a Páscoa, na hora da Missa ele disse que neste ano não faria excepções como o colega anterior, e ia entrar em todas as casas que tivessem a porta aberta.

Zilda, mulher de fé, ia á Missa aos Domingos, e ouviu a informação... ficou contente, mas um tanto receosa decidiu falar pessoalmente com o Padre.
- Ele confirmou, que de facto seria assim; - depois no futuro se veria... Mas não deixou de lhe lembrar que ela vivia ás custas dum homem casado, de quem tinha até uma filha. Era verdade, mas Zilda sentiu-se magoada. Tantas vezes ela em silêncio se lamentava da sorte que Deus lhe dera... E agora vinha este rapaz Padre, lembrar-lhe o que ela não esquecia...Perguntou a si própria se devia ou não abrir a porta....

No Domingo de Páscoa, Zilda na sua sala, com algumas amigas  recebeu a visita Pascal.
Contra o que julgava ser, não sentiu alegria. De pouca ou nenhuma religiosidade se apercebeu, achou tudo estranho, sentiu -se vazia. É falta de hábito, pensou...

Mas quando subiu a escada depois de ter vindo fechar a porta, teve a certeza - viu a passadeira toda marcada de verde, das plantas esmagadas pelos sapatos dos homens; na sala a carpete a mesma coisa, o chão de madeira encerado, sujo, e cheio de pingos de água benta... E aí não teve dúvidas, e afirmou
para si própria - foi a primeira vez, e será a última ! E foi!


sexta-feira, 10 de abril de 2015

Chapas amolgadas

Ontem, na minha rua.
E porquê, porque o acidente espreita?
Sim, mas não na totalidade, por vezes também a negligência tem a sua quota.
Semáforos apagados há várias semanas...
Serviços oportunamente avisados da avaria, porém - orelhas moucas...
Hoje é outro dia... Os semáforos já foram activados!

domingo, 5 de abril de 2015

A Montanha e o Vale

«Sou alta» - diz a Amizade.
«Sou profundo» - diz o Amor.
E lembram bem, na verdade,
Montanha e vale, ao sol-pôr.
Pois antes que o sol resvale
Ao pélago, onde se banha,
Já dorme em sombras o vale
E há ainda sol na montanha.

(João Saraiva)

Caros amigos e visitantes
Já é dia de Páscoa, venho com atraso, mas venho - para vos apresentar os meus cumprimentos de Boas Festas, nesta Quadra Pascal. E desejar que a alegria reine em vossos lares, e nos vossos corações.
Aceitem ainda e também, o abraço da Dilita.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Laranja de Padre


Pessoa amiga ofereceu ao meu marido uma quantidade de limões e laranjas, produto das suas árvores situadas no quintal à beira de casa. Que agradável será ter ali as laranjeiras e os limoeiros com as folhas fresquinhas sempre à mão, para um saboroso chá...  Até aqui tudo vulgar, aparentemente, não fôsse o  volume de cada laranja - dei-me ao trabalho de pesar esta, que por acaso é a maior- pesa 500 gramas (meio kilo) assim bem pesadinho, e não têm a casca grossa.
   
Esta laranja no prato fez-me recuar ao tempo da minha meninice... nessa altura a Páscoa era vivida com alegria e alvorôço na minha terra. No Domingo a visita Pascal era aguardada com ansiedade - colocava-se rosmaninho na rua á entrada das residências, e abriam-se as portas de par em par- as pessoas nas janelas observavam, e  assim que se ouvia a campaínha que um dos membros da comitiva agitava continuamente, avisavam para alguma vizinha mais descuidada  " olha que já está perto, já está perto..."
Um grupo de homens acompanhava o Padre - um trazia a caldeirinha da água benta, outro os foguetes, outros as sacas de brocado vermelho para as ofertas, e outro mais respeitável carregava o grande Crucifixo repleto de flores.
Já na sala, depois de aspergir com água benta os familiares ali reunidos e das saudações de Boas Festas e Aleluias, (as pessoas ajoelhavam) o Padre pegava o Crucifixo, e dava o Senhor a beijar - dizia-se e fazia-se "vou beijar o Senhor a tua casa, e depois vens tu à minha..."

Nalgumas casas (poucas) a mesa estava posta com bolos, queijo e bebidas - se apetecia eles petiscavam, antes de dizerem adeus...
Nestas estava também a oferta para o Padre, um pouco mais generosa, do que na maioria das residências da Vila, cuja população mantinha a tradição que já vinha de longe. E a tradição era, dar uma laranja com uma moeda em cima.
O valor da moeda variava consoante as possibilidades de cada família, e fazia-se o possível para dar uma laranja grande.
Assim, as laranjas grandes eram chamadas laranjas de Padre...

Esta laranja que hoje fotografei, faria um vistão, nesses anos longínquos...