terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Serenata


Volto a falar do Montemor do meu tempo,pequenino,bonito sem dúvida,mas pobre,com caracteristicas de aldeia.Viam-se cães pelas ruas, galinhas,e até ninhadas de pintainhos: passavam o dia na rua de trás e na feira da madeira,e só à noite recolhiam a casa.Também era um modo de produzir algum dinheiro,pois as carências eram mais que muitas,e não havia subsídios.Assim as pessoas viam na possibilidade de ter "criação"um bem a aproveitar.(Tempos difíceis)
Existia a vala,curso de água que atravessava a vila,e que além de lavadouro,nela nadavam patos e gansos propriedade de vários residentes naquela zona; só vinham a terra quando o característico "liro,liro,liro"pronunciado em voz alta pela dona,e conhecido pelo grupo como sendo comida à vista, os fazia correr para ela; comiam com sofreguidão,para logo depois regressar ao seu paraíso aquático: à noite recolhiam a casa de livre vontade;excepção apenas em ocasiões de cheias quando a vala desaparecia, engolida por um estuário de alguns kilómetros;então ouviam-se ao longe os seus estridentes "quá,quá,quá, no silêncio da noite,e por lá ficavam assim como também os ovos "graúdos" das patas. Numa dessas cheias (grandes) em que a água cobriu toda a rua principal e também o muro que ladeava a vala,as bateiras (barcos de madeira) entraram ao serviço para a entrega de pão,artigos de mercearia, ou comprimidos para atenuar sofrimento.As casas do lado direito da rua,tinham saída para a encosta do castelo;as do outro lado tinham a rua de trás com mais água ainda,pois o pavimento era ligeiramente mais fundo. Havia a vala,separada pelo muro,e a paisagem das terras de cultivo divididas por vegetação alta e algumas árvores,mas agora só a água predominava.Estávamos numa ilha,e digo estavamos porque eu estava lá...e assim me sentia bloqueada,e até apreensiva.Os homens que assim vogavam naquelas "cascas de noz" para ajudar,nada cobravam,era um auxílio expontâneo fruto da situação; certamente que haveria alguma gratificação por parte de quem vivia melhor,mas o que era isso em relação ao bem que faziam... Aconteceu numa dessas noites estar um luar maravilhoso,(eu não sei se seria o luar de Janeiro),que se projectava nas águas e inspirou um grupo de rapazes a agir; no meio do silêncio só quebrado pela vara que impulsionava os barcos,elevaram-se vozes,cantando fados de Coimbra.Todos nós corremos para as janelas; os barcos avançavam lentos pelas águas ao largo, frente à Vila, e os fados sucederam-se um após outro, melodiosos como só a balada Coimbrã sabe ser.Durou bastante tempo a serenata,foi bonito o gesto daqueles jovens,ficou a recordação e posteriormente a saudade.
No dia seguinte a água tinha baixado um pouco,já estava a descoberto o cimo do muro (de suporte da vala),mas ainda impossível sair de casa,viriam de novo os barcos.Talvez"atraídos pelos fados," os patos acercaram-se das casas nessa noite e as patas poedeiras,colocaram os ovos em cima do muro,frente à minha casa;dois aqui, três além,ao todo eram 14;que rica fritada em prespectiva!Ainda era cedo e já vinha o nosso vizinho sr.Joaquim Ferreira num barco e perguntou:-É preciso alguma coisa? A minha mãe respondeu:-É sim; é preciso ir buscar aqueles ovos,são 14, metade para mim e metade para o sr.Joaquim levar p’ra casa. Ele logo efectuou a manobra, e ainda colocou os referidos num cesto,que preso por um cordão os içou para a minha janela.Durante alguns anos,quando a água subia,ele, a esposa e a minha mãe,entre sorrisos recordavam o facto,(único) pois jamais se repetiu.

1 comentário:

Olímpio disse...

Vim visitar o teu blogg que achei muito bom.