segunda-feira, 1 de junho de 2015

Nostalgia


O sol estava a despontar e depressa a sua claridade alaranjada se projectou naquele banco adornado de azulejos. Era cêdo, a rua estava deserta, e o sol tomou a palavra...
- Estás velho amigo banco, tu e os outros cinco que te fazem companhia...
-Não, não estou; - eu sou mesmo velho, e os meus azulejos de que me orgulho tanto, ainda são mais idosos do que eu. Mas eu ainda estou forte, eles coitados é que estão fragilizados, também graças a ti e aos outros elementos, ditos naturais.
- A mim ? Eu, o sol, que tudo faço germinar ?!
- Fazes germinar quando não queimas com o teu calor impiedoso! Vocês são os culpados!
- Vocês? Então, além de mim, quem mais?
-O vento, a chuva, a geada o granizo - em anos e anos de agressões, provocam danos bem visíveis.

És capaz de ter razão, eu  sou distraído, e ando até um tanto esquecido...

-Pois eu tenho boa memória, e agora vivo de recordações, e são muitas - algumas alegres, e outras de muita mágoa.
- A sério ? Eu tenho tempo posso ouvir-te, queres desabafar?
- Quero sim, então ouve:
-Tenho saudades do tempo em que este edifício onde me encosto, era o Hospital de Nossa Senhora de Campos. Aqui vinham os doentes tratar da saúde, era um espaço prá vida, embora para alguns, ela aqui tivesse o seu fim. Ainda cá nasceram bébés... paravam aqui casais cheios de alegria, com o seu pequenino, e colocavam a alcofa em mim, enquanto esperavam o táxi que os levava para casa ; como eu gostava desses momentos...

-Agora é um Lar da Terceira Idade - nome pompôso - para um Internato de pessoas velhas. E não faltam as vozes piedosas, ainda novas, pois claro, com a afirmação de que não há velhos, porque velhos são os trapos! As pessoas não!
- Lérias! Velho é velho, e não há retorno para voltar a ser novo...

E este jardim?! Estava sempre cheio de flores... Até tinha um lago com peixinhos vermelhos, que eram o encanto da pequenada.
Esta zona era o local de passeio Domingueiro, e até de semana também, para os poucos que podiam vir até  aqui espairecer... As árvores fronteiras davam frescura e aroma. Agora, já lá não estão...
- Esta é a minha maior mágoa - não terem dó de cortar aquelas "vidas"... aquilo não eram árvores, aquilo eram monumentos! Enormes, saudáveis, e antigas... Não havia ninguém em duas gerações, que não tivesse comido as bagas doces que elas produziam. Hoje são só saudade.

-O sol que ouvia em silêncio, murmurou - mas porque fizeram isso? Foi um sacrificio em nome do progresso? Se assim foi...
-Mas qual progresso, malvadez humana lhe chamo eu, e  no meu entender de pedra dura, foi um crime! - Mataram-nas! - eu não lhes perdôo, mataram as minhas vizinhas queridas!

-O sol começou a esmorecer... Entendo o teu desânimo, mas não sei que te diga. Conta-me algo mais alegre, se é que consegues lembrar-te.

-Lembro sim: foi há muito tempo, anos sessenta. Na época em que os casamentos eram para toda a vida, e começavam pelo namoro, que  não era nada como é hoje.
-Assim num dia de primavera, um par de namorados em passeio veio sentar-se aqui. Percebi que namoravam à pouco tempo, estavam  na fase do encantamento. Ele aproveitando o facto de não passar ninguém, nem nenhum automóvel  naquele momento, sorridente pegou-lhe na mão, e numa pressa disse:- somos namorados, vou dar-te um beijo, e deu.  Ela nem tempo teve para dizer algo, corou até ás orelhas com aquele beijo rápido, que era afinal o primeiro do género, em sua vida. A seguir, ainda sorridente, ele senhor de si, falou:- então, eu dei, tu não deste, estou à espera...ela confusa acedeu e deu-lhe um beijo, muito apressado e completamente desajeitado, e corou ainda mais...
-Precisas de praticar, foi um beijo sem perfeição - mas não faz mal - disse-lhe ele ao ouvido, enquanto com as suas mãos segurava a mão dela com firmeza, e sorria.
Olharam o relógio, e daí a pouco, deixaram-me.

O sol animou-se e disse  - gostei da recordação desta ternura. E eles voltaram mais vezes?

-Só de tempos a tempos, mas beijinho não vi mais. Na rua, não era conveniente. Ele queria casar com ela, (e casou) e certamente não gostaria de dar azo a más interpretações. O povo daquela época era cruel, costumava dizer "mulher beijada, é mulher desgraçada"- preconceitos, a tocar o Medieval...
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-Mas sabes que eles me adotaram desde logo ?  Passaram a chamar-me "o nosso banco" e agora depois de tantos anos, ainda gostam de olhar para mim. Vê lá caro sol, que até me fotografaram...

-És um sortudo, e ainda te lamentas! Fico contente por ti, acredita, exclamou o sol.
Mas agora tenho de partir, e digo-te adeus, mas voltarei para me contares outra das tuas recordações.
Até breve...

9 comentários:

Nouredini.'. Heide Oliveira disse...

Sua capacidade de ser terna me trás lágrimas as olhos! Em bom tempo resolveu escrever as tuas crônicas. Sou feliz pela oportunidade de passar aqui.
bjs querida amiga, vamos junta-las e costura-las em barbante, qual presente nos velhos tempos.
bjs de areia brilhante!

Manuel disse...

Belo, muito lindo este texto, me comoveu.
Foi um desfilar de recordações e de verdades.
Os lares, nome pomposo, não passam de depósitos onde despejam os velhos e os deixam à espera.
A Dilita tem uma sensibilidade que nos faz gostar de ler o que escreve.
Sou seguidor.

Ferreira Carvalho disse...

Ainda bem que vim cá, gostei muito do texto que escreveu! É sempre bom vir lê-la, dá-me em todas as vezes vontade de retornar.

http://estasaudosacasa.blogspot.pt/

Rosangela disse...

Que alegria receber sua visita minha estimada amiga.
Obrigada pelo comentário.
Adorei passear contigo através das belas fotos de seus últimos posts e oque dizer deste seu texto? Emocionante...
Linda semana para todos aí.
Beijo.

Viviana disse...

Querida Dilita

Mas que texto encantador!
Que lindo!

Gostei, e apreciei muito, boa amiga.

Diga-me: Já escreveu algum livro?
Não? Então faça o favor de ir pensando nisso.

Fico á espera.

Um grande e fraterno abraço
Viviana

Nouredini.'. Heide Oliveira disse...

Um bom verão gostoso e farto como as frutas da estação

Jossara Bes disse...

Que lindo!
Lembranças de tempos suaves! Doçura e romantismo!
Tenha uma semana muito feliz!
Beijo carinhoso!

jair machado rodrigues disse...

Minha querida e adorável parente e amiga Dilita, cá estou a me regalar com tuas peripécias escritas, que doces palavras, que doces lembranças, que doces histórias, uma fábula, uma metáfora, que delícia, me encanta. Quando vi o banco, os azulejos, antes de começar a ler, vi Rio Pardo, aquela cidade que estou e não quero mais rs, tem uma forte descendência açoriana, e não é raro ver algum azulejo exposto, não tão lindo assim num banco, mas numa parede perto de uma porta, ou adornando janelas, enfim. O embate do Sol e do Banco, que lindo, quando verdade, quanta vida, quanta história passada ali, e ainda passando. Ricas palavras minha querida amiga, andei longe com tuas palavras, e feliz com o final feliz deste escrito que ganhou meu coração. Saudade sempre querida amiga Dilita.
ps. Carinho respeito e abraço.
ps2. E no meio desta fábula maravilhosa encontras palavras para saudar estes seres que tenho verdadeira adoração, que são as àrvores.

Clara Fernandes disse...

Bonita crónica sobre o passado e o presente, os tempos e as coisas, os sentires, os deslumbramentos, os primeiros momentos de tudo o que começa e promete, e nem sempre cumpre conforme parecia ser sua intenção.
Suavidade, dureza, candura, e , tomando o recurso estilístico da personificação feito de estrutura, uma página na vida de alguém.
Bonito!