O vigário de Deus na terra disse um dia
Aos batalhões do clero :
Tragam-me o manto d'oiro e seda que cobria
As espáduas de Nero.
E trouxeram-lhe o manto,um manto de brocado,
Da púrpura mais fina,
Com manchas de lôdo obsceno,inda empastado
No sangue de Agripina.
E o papa continuou :«preciso armar o braço,
Para ditar as leis;
Fabriquem-me uma espada enorme,com o aço
Das espadas dos reis.»
E trouxeram-lhe o gládio. O papa ficou mudo,
Num assombro d'espectro,
De súbito exclamou : « ainda não é tudo ;
Tragam-me agora um cetro !»
Trouxeram-lho. E, depois dum silêncio profundo,
Rugiu como um leão :
«Tragam-me agora o mundo!» E puseram-lhe o mundo
Na palma da sua mão.
E soprando o globo e arrancando o montante
Enorme da baínha,
Bradou pela amplidão :«Sou Júpiter-tonante!
Humanidade, és minha !
Eu tenho o gládio e o cetro,a excomunhão e a bula ;
Sou o Deus, sou a Fé.
Miserável réptil, Humanidade,oscula
A ponta do meu pé !»
E, sentando-se sobre o coração de Itália,
O sátrapa romano
Estendeu,desdenhoso, o bico da sandália
Para o género humano !
Nesse instante, um fantasma entrou nos régios paços,
Sereno e formidável.
Encarou fixamente o rei,cruzando os braços
No peito inabalável.
E trovejou,deixando o papa sacrossanto
Lívido, espavorido :
«Sou a Fraternidade. Entrega-me esse manto
E essa espada, bandido !»
Despedaçou-lhe o gládio e a túnica purpúrea,
E saiu triunfal.
E o papa horrorizado, espumando de fúria,
Uivou como um chacal :
«Nesta invencível mão d'abutre encarquilhada
Guardo o meu tesoiro.
Ficou-me ainda o cetro. Era de ferro a espada...
Prefiro o cetro... é d'oiro !»
E o papa viu então, oh trágica ansiedade !
Um vulto sobre-humano
Avançar e bramir : - o meu nome é Igualdade ;
Dá-me o cetro, tirano ! -
Quebrou o cetro e foi-se. E o papa como um lobo
Sombrio, respondeu :
«Na minha forte mão ainda sustento o globo ...
Ainda o globo é meu ! ...»
E desatou a rir ... um riso sanguinário
De pantera. Depois,
Surgiu novo fantasma hercúleo,extraordinário,
Maior que os outros dois.
E como o rebentar potente dum trovão
Que abala a imensidade,
O fantasma rugiu : - Não me conheces, não !
Chamo-me a Liberdade !
«Venho buscar o mundo. Entrega-o, salteador,
É meu o globo, harpia !»
E arrancou-lho. Soltando um grito, no estertor
Convulso da agonia,
Tombou por terra o papa. E repentinamente
Viu surgir-lhe do lado
Um esqueleto a rir, todo fosforescente,
Podre, desengonçado,
Que lhe disse:- Morreu,ó papa, o nosso império,
Morreu o mundo antigo.
Tu chamas-te Alexandre,eu chamo-me Tibério ! ...
Vem deitar-te comigo !...
E como um caçador fantástico que leva,
Sangrenta e moribunda,
Uma hiena a gemer,de rastos, pela treva
Numa noite profunda,
O esqueleto levou para a cripta sombria
O cadáver do irmão,
Indo dormir os dois na eterna mancebia
Da mesma podridão !
( De Guerra Junqueiro )
1 comentário:
Fantástico este poema!!!!
Fantástico o autor,Guerra Junqueiro.
Se ainda estivesse entre os vivos,nesta altura não lhe faltaría pano pra mangas...
Um abraço.
Luis Costa
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