Na Vila,cheia de história e belezas naturais, a vida era demasiado pacata, mas à quarta feira de quinze em quinze dias, acontecia a feira. Era centenária, tinha lugar cativo, e como mercado era deveras importante. Ali se vendia de tudo; - desde o simples mólho de erva (escalrrácho) para o gado cavalar, até aos finos objectos do mais puro ouro. Tudo o que era necessário se comprava na feira. Neste dia a Vila transbordava de gente, das freguesias e terras ao redor, e mesmo de algumas situadas a alguns kilómetros de distância.
Os feirantes vinham de lugares distantes, de furgoneta velha mas grande, outros menos abastados tinham carroça e cavalo, outros de carro de bois, ou burro, dependia dos géneros que vinham vender. Tinham lugar marcado no chão de terra batida, e bancada de madeira, e em local perto mas afastado, estacionavam os animais, e mais ao lado as viaturas.
A feira estendia-se por todo o grande Largo da Feira, frente à estrada, e seguindo por ela e andando uns bons metros chegava-se à feira da sardinha. Sardinha e carapaus maiores e menores, fresquinhos ou salgados, era o peixe que nunca faltava.
Neste bocado de estrada que separava relativamente as feiras, na espécie de valeta que ladeava a via, e observando algum espaço entre si, estavam os mendigos. Também eles vinham de longe, não eram da Vila. Era um espectáculo triste, deprimente, desolador... Sentados no chão, todos tinham mazelas; braço empanado, perna coberta de ligaduras, grandes chagas, sujos, ali exibiam as suas desgraças e pediam ajuda com lamentos em alta voz. As pessoas (eram muitas neste dia) condoíam-se e davam...
E nada mudava, e na feira seguinte, era igual...
Neste grupo, estava um pedinte diferente: tinha um pedaço de manta no chão, e nele uma criança que aparentava uns oito anos, e tinha umas proteções de borracha nos joelhos e nos cotovelos. A criança rastejava no pequeno espaço. E ele de pé chamava a atenção e pedia nestes termos: - olhem para esta desimfeliz! Não se levanta, é como um gato. Tenham pena da minha Xiquinha! A miúda gritava a dizer - eu não sou isso! Sou Zulmira! - Não és nada! Vêem? ela também é maluquinha da cabecinha dela, tenham pena!
Sobretudo as mulheres comoviam-se com a triste sorte da menina, e deitavam na "bandeja" uma moeda, ou alguns géneros que retiravam do que haviam comprado. E assim passou muito tempo, a menina até estava maior, e mais pena dava a quem a olhava, e ouviam-se comentários;- coitadinha está a tornar-se uma mulhersinha, e nesta desgraça.
Um dia a menina não veio, mas o pai estava no mesmo local, agora sentado no bocado de manta, e de camisa prêta. Na mesma estendia a mão à caridade, e às perguntas sucessivas que lhe faziam, respondia pesaroso que a sua Xiquinha tinha morrido num desastre, onde ele também ficara ferido, e ainda trazia a perna com talas.
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Era verão. Estava um sol bonito, mas sobretudo muito calor. Na fonte à beira da estrada no lado norte da Vila, a Nazaré e a Anita aguardavam que a água lhe enchesse os cântaros, para regressarem a casa. Conversavam sobre a séca que neste ano estava a dar prejuísos enormes, e nem repararam que um pequeno automóvel havia parado do outro lado da rua. Só quando ouviram falar é que o viram, e se aperceberam de que no seu interior estava um casal. A senhora era nova (viram depois) e saiu rápida do carro dirigindo-se logo para a fonte. Sorridente, saudou as duas mulheres com um sonoro Boa Tarde! Depois acrecentou:
-Está tanto calor, que eu estava desejando chegar aqui para beber água...
- Beba beba, que é fresquinha e não custa dinheiro... Mas diga-me uma coisa, disse a Anita - então já sabia que havia aqui uma fonte? Mas a senhora não é daqui... Querem ver que adivinha?
-Ela sorriu agradada com aquela quase familiaridade, e respondeu.
- Ah, quem me dera ter esse predicado, de adivinhar...Também eu, retorquiu a Anita; sobretudo se adivinhásse o numero da sorte grande; olhe, não andava mais a acartar a água, pagava a quem ma viesse buscar. A Nazaré que até aí tinha estado calada, resolveu também meter palavra; - não querias mais nada, ora esta? Só querias ficar rica, para te dares à molenguísse... ora, morrias logo, tu sabes lá estar quieta.
Riram-se em coro. O marido que entretanto saiu do carro juntou-se ao grupo, e também entrou na risada; depois olhou o relógio e disse, temos de ir andando.
Vinham do Pôrto e iam para Fátima, queriam chegar cedo, e já se despediam quando a Anita se lembrou ;- então, mas afinal não satisfez a minha curiosidade; - não disse ainda como sabia que havia aqui esta fonte....
Não é de cá, e agora já sei que vive no Norte...
Súbitamente o riso desapareceu completamente do rosto da senhora bonita, que ficou calada um momento como que a ganhar coragem, mas depois respondeu:
- eu quase fui criada por aqui, as senhoras secalhar até me conheceram... E os olhos encheram-se-lhe de lágrimas, e o peito estremeceu-lhe em soluços que não conseguia evitar.
A Nazaré ficou sem palavras, e a Anita muito aflita por ter sido a causadora, com a sua insistência, daquela reação, da qual não entendia o porquê. Quis manifestar-se, dizer algo que trouxesse de volta a boa disposição anterior, mas só lhe ocorreu perguntar:
- Então, e está a chorar só por isso? Por ter sido criada por aqui? Não é razão...
-Por um momento ela reprimiu as lágrimas teimosas e respondeu:
-Eu sou aquela menina, que rastejava na feira. Sou a Zulmira.
-Nunca fui deficiente, nem tolinha...
7 comentários:
Lindo e com um final inesperado.
Tem muito jeito e consegue levar-nos embalados nessa bela viagem.
Parabéns!
Parabéns pela leveza da escrita, riqueza dos detalhes e a surpresa do final.
Uma estória que de fato história em muitos lugares.
Beijos amiga
O ritmo da história, o enredo, o inesperado climax, tem todos os ingredientes de um belo filme neo-realista italiano dos anos 50...Com uma realização de mestre!
Olá Manuel
Obrigada pela apreciação e pelas felicitações.
Abraço.
Amiga Nouredini!
Gosto de sabê-la por aqui de novo.
Agradeço a sua crítica tão favorável, e os Parabéns.
Beijinhos.
Olá Zito!
Grata pela "presença" aqui.
A sua opinião deixou-me contente, e a sentir a obrigação de fazer sempre melhor, para não desiludir (as e os) amigos.
Abração.
Querida Dilita
Fiquei sem palavras.
Um grande abraço
Viviana
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