sábado, 18 de outubro de 2014

Já fez cem anos

O sino da Igreja começou a repicar alegremente, e as pessoas que no adro esperavam para ver sair os noivos repetiam: - já está casada! Já está casada!  Umas quatro raparigas aproximaram-se da porta da Igreja, cada uma com um prato de pétalas de flores na mão, para as atirar ao casal assim que ali chegásse. A aldeia era pequena, todos se conheciam, e todos participavam das alegrias uns dos outros.
A comida para a boda estava decerto a esfriar, porque os abraços não acabavam mais, e retinham os noivos ainda no Adro da Igreja.

Uma familia em perspectiva, dizia um dos acompanhantes, ambos sabem bem tratar da lavoura, irão ter casa farta com o produto do seu trabalho. E assim aconteceu, fizeram as sementeiras, as  sachas e as mondas, e viram as searas crescer, porém o Zé já não fez as colheitas.
Num dia que foi demasiado triste para a Rita, o Zé recebeu ordem para se apresentar no Quartel, que ele já conhecia, porque iria ser mobilizado para seguir para França; a guerra  havia começado, e Portugal como aliado de Inglaterra ia participar.

A Rita gritou, e depois desfez-se em lágrimas. O Zé  fazia-se forte e repetia;- tem coragem mulher, nem todos que vão prá guerra lá ficam.- Eu hei-de voltar! - Eu volto, vais ver...  - Sei lá se voltas, dizia em lágrimas a Rita. - Estou cheia de maus presságios, tenho o coração negro como a noite...

Passados dois dias, o Zé lá partiu, e com ele também outros homens dos lugares próximos. Na aldeia só se ouviam lamentos, não se falava noutra coisa.

Entretanto o tempo foi passando, a Rita tomou coragem, e deitou mãos ao trabalho; a lavoura ocupava-lhe o tempo de sol a sol.
Começou a ter esperança, e pensava - talvez Deus o proteja... E à noite na cama sózinha, rezava e pedia a almejada proteção. Era crente, e a fé uma enorme força, agora já não queria pensar no pior, o seu Zé iria voltar, dizia em pensamento.

Mas não... numa manhã de céu enevoado, inesperadamente alguém bateu à porta:
- quem é? inquiriu a Rita antes de abrir...
A voz de fora respondeu - carteiro! Sobressaltada correu a abrir a porta, ansiosa...
- trago uma carta, é do exército; disse o Sr. João, o carteiro, com ar apreensivo.
- eu não sei ler, abra se faz favor, e diga-me o que é que aí vem... disse a Rita já de lágrimas nos olhos.

Choraram os dois, o Zé não voltaria mais, ficara naquela batalha maldita.

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A Rita vestiu o luto das viúvas, chorou a sua mágoa, viveu a desilusão e a tristeza, maldizendo aquela guerra estúpida e má, que tanto mal lhe tinha causado. As amigas davam coragem, com opiniões repetidas, que ela só tinha era de procurar conformar-se, porque já nada havia a fazer...

O tempo ia passando, a Rita continuava a trabalhar, e quantas vezes com as lágrimas a cairem na terra que cavava.

E um dia um primo do Zé, o Jorge, fez por se encontrar com ela no caminho para a mercearia. Falaram pouco tempo, ela tinha sempre pressa. A situação repetiu-se algumas vezes, sempre de modo igual. Mas um dia depois de muito pensar, ela decidiu dar crédito ao que ele lhe andava a propôr, e aceitou recebe-lo em casa para acertarem pormenores.

O Jorge todo palavroso, fazia-lhe referência favorável, dizendo que se sentia com sorte, pois ela até já tinha a casa posta, era um bom principio para ele. Começou o namoro... Combinaram casar daí a tres meses.
A Rita voltou a sonhar!
Mas o sonho acabou em pesadelo, quando um dia por uma questão fútil o Jorge se mostrou agastado e deixou de aparecer.

Ela deixou-se ficar "nas suas tamanquinhas" como sói dizer-se, mas daí a uma semana as lágrimas voltaram aos seus olhos. O Jorge ia casar com uma vizinha que já esperava um filho dele, e até a data para o casamento estava marcada.

No dia do casamento, a Rita, pela janela entreaberta viu o cortejo com os noivos todos sorridentes.
Também ela esperava um filho do Jorge... Em lágrimas ajoelhou-se no chão da cozinha,  e desta vez não pediu ao seu Deus qualquer proteção. Pediu para aquela mulher que hoje era noiva, que se gozásse tanto do marido, como ela, que foi enganada na sua boa fé, e estava só.


Um mês depois, também o Jorge foi mobilizado, e mandado para a guerra. Morreu no campo de batalha em França.
Não chegou a conhecer o filho legitimo, nem a filha da Rita, ambos da mesma idade.

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( Estamos em 2014.  100 anos sobre o inicio da primeira Guerra Mundial )
Escrevi este texto, simples, baseado em factos verídicos)

10 comentários:

Dilmar Gomes disse...

Gostei do seu texto, fluente, bem escrito, enxuto; gostoso de se ler.
Agradeço sua adesão ao meu modesto espaço. Obrigado por seguir meu blog. Um abraço daqui do sul do Brasil. Tenhas uma ótima semana.

Manuel disse...

É magnifico este texto.
Retrata o que, infelizmente, foi muito comum, num passado não muito longínquo.
Conheci casos muito semelhantes que ainda perduram na minha memória.
Parabéns pela bela abordagem.

Viviana disse...

Querida Dilita

Que interessante este seu texto...

Sei de várias histórias muito tristes, relacionadas com a guerra.

Sei também que os nossos soldados, sobretudo, gente do campo ...foram abandonados ao seu destino por as autoridades portuguesas.

Que triste fiquei.

Pobre povo, o nosso.

Já não é de agora...que sofre.

Um grande abraço, amiga
Viviana

Mona Lisa disse...

Avida com suas agruras!

Excelente texto!

Beijinhos.

Unknown disse...

Por vezes, amiga, a realidade ultrapassa a ficção...A figura da Rita é um retrato perfeito dos malefícios da guerra, por um lado, e da maldade humana, por outro...A história, prenhe de sonhos e dese nganos está, sobretudo, contada a primor...Lamentando a sorte de Rita, saúdo a contista. sensivel e de fino recorte literário...
Abraço fraterno,
Zito

dilita disse...

Olá Dilmar,

Bem vindo ao meu birras! E muito agradecida pela apreciação tão simpática. Volte sempre!

Dilita

dilita disse...

Olá Manuel

Obrigada pela sua simpatia.
Pessoalmente não conheci o caso, mas conheci a Rita (nome fictício.)

Abraço,
Dilita

dilita disse...

Viviana querida,

Compreendo; também me emocionei ao escrever sobre estes factos verídicos. Como mulher não consegui abstrair-me
completamente.

Beijinhos.
Dilita

dilita disse...

Lisa querida,

Obrigada pela visita e apoio.

Beijinho

Dilita.

dilita disse...

Olá Zito amigo

Obrigada!

A sua apreciação tão favorável deixou-me contente, pois a sua opinião tem muito valor para mim.
A história é triste, e infelismente verdadeira; as palavras do Zito são o exacto significado.

Abraço,
Dilita