O Dr. Gustavo atravessou a rua e parou a olhar para o hospital, aonde trabalhava. Formou-se em medicina na Universidade do Porto, e depois do estágio, sentiu-se atraído por África, e foi para Lourenço Marques.
Agora olhava para aquele hospital aonde era feliz, e sabia que iria sentir saudades. Tinha passado ali mais de dez anos... Mas não podia ali continuar, queria ir para longe, para um local onde não fosse conhecido; tinha de ser. Por isso em breve iria recomeçar a sua vida noutro estabelecimento de saúde, mas na África do Sul; estava decidido, era só questão de tempo.
Há meses que sofria em silêncio, enraivecido, mas também magoado... no entanto, calava a todo o custo, o seu estado de alma, o seu problema sem solução. Ele sempre dizia que o médico deve deixar as suas preocupações do lado de fora do hospital, e entrar livre para o seu trabalho, o seu sacerdócio... E era isso que ele fazia, mas o esforço tornou-se demasiado, e nessas circunstâncias era prejudicial continuar a trabalhar, pelo que decidiu descontar uns dias de férias. E agora ali estava ele dispensado até de fazer noite, (já nessa terça feira como era hábito) e a caminho de casa para descansar.
Já no jardim da sua moradia, reparou na Rosy, a cozinheira, que vinha ao seu encontro, mostrando preocupação porque não esperava ter os senhores para jantar... O sr. Dr. ficava sempre nesta noite no hospital, e a sra. havia saído, e disse que não vinha jantar... Mas que ia já tratar duma refeição, já! Já!
- O Dr., sorridente respondeu-lhe: - não tenhas pressa "minha mãe preta," eu ainda não tenho fome, tens o tempo todo, faz qualquer coisa simples, não te enerves, olha que se adoeces ainda me dás aflições... (o Dr. Gustavo tinha um enorme carinho por esta criada, e chamava-lhe a sua mãe preta.) E depois aonde é que eu encontro quem me faça os pitéus que tu fazes?! Ela retorquiu: - Nesta casa eu não vou adoecer nunca!... e lá foi apressada rumo à cozinha.
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As horas passaram, era já madrugada, e o Dr. Gustavo sentado no sofá da sala, com uma arma nas mãos, uma espécie de espada (tinha várias a decorar as paredes) apreciava a arte daquela peça, com bocadinhos de marfim incrustados imitando folhas. Um trabalho efectuado pelos indígenas, artistas, nem sempre valorizados. Aquela peça fora-lhe oferecida há poucos dias por um colega.
Olhou de novo o relógio, era tarde mas ele não tinha sono. Aguardava a chegada da esposa, e sentia que mesmo sem que o tivesse decidido, estava a chegar o momento de pôr fim aquela triste situação que o minava dia após dia. - Sim, ia ser hoje.
Apesar do adiantado da hora, Marília caminhou devagar pelo jardim da moradia até à porta; introduziu a chave e depois de a abrir, ainda se voltou para mandar um beijo e um aceno de mão, ao homem que encostado ao carro, esperava que ela entrásse em casa. Depois de ver a porta fechada, ele entrou no carro acelerou e partiu.
Marília subiu os poucos degraus que a separavam do primeiro andar, e reparou que na sala havia luz. Ficou sobressaltada, mas foi em frente, e decidida abriu a porta: a surpresa foi aterradora; na sua frente estava o seu marido, agora de pé, e com uma arma na mão... ela estacou; o pânico tolheu-lhe os passos, cobriu a cara com as mãos, e um grito rouco descontrolado saiu-lhe do peito...
-Não precisas de ter medo! Disse o marido olhando para ela com dureza. Eu sou o Dr. Gustavo, sou médico. Sou pela vida, e não pela morte, e não gosto da palavra assassino para acrescentar ao meu nome.
-Nunca pensei usar esta arma, vejo-a apenas como um objecto artístico, e por isso a tinha nas mãos. Mas foi positivo ter pegado nela, se dúvidas tivesse, estariam agora dissipadas; o medo que demonstraste é bem a prova da tua culpa...
-Mas não te vou perguntar onde, nem com quem estiveste, sei tudo, não preciso das tuas explicações descabidas. Esse empresário deu-te volta à cabeça, e já não vês mais nada, nem ninguém, só a ele. Porquê? Porque é rico? Talvez seja por isso; mas repara que ele não é teu marido, e o dinheiro dele não é teu; talvez um dia te detenhas a pensar nisso, mas então será tarde de mais. Calou-se por instantes, depois continuou: - tenho assuntos importantes a comunicar-te; fica marcado para logo à tarde.
E sem dizer mais, desesperado, saiu da sala.
Marília,estava atordoada, já nem tinha a certeza se estava a viver um facto, ou um pesadelo... deixou-se cair num maple, e as lágrimas não se fizeram esperar... mas depois concluiu para si, que na verdade estava enfeitiçada pelo Alex. Não via outro Deus, como sói dizer-se.
Era meio da tarde quando o Dr Gustavo regressou a casa, e se encaminhou logo para o escritório. Não se havia sequer deitado naquela noite, e tinha saído ao nascer do sol; vagueara primeiro pela Cidade, e depois fora tratar de várias formalidades que havia "alinhavado" durante os longos estados de insónia, de que ultimamente sofria.
Sentou-se à secretária, leu a correspondência, e chamou a Rosy para que lhe trouxesse um copo de água, e dissesse à sra. D. Marília para vir ao escritório.
Pouco depois ela entrou, e ficou de pé...
- Senta-te, disse o marido, e de seguida deu inicio ao que pretendia dizer: - Como deves calcular, a partir d'ontem já nada volta a ser igual, no que a nós respeita. Estamos casados, mas esse estatuto só existe nos papeis que assinámos, em nada mais. Não sei se ainda gosto de ti, ou se me dás pena, sei sim que não te quero a meu lado, a tua presença actualmente é - me incomoda e irritante. Mas não quero insultar-te, não sou partidário desse modo de agir; e lamento que actualmente, e até já à algum tempo a esta parte, tenhas caído nas implacáveis bocas do mundo. Sim, porque já nada disto é segredo, tu é que estás convencida disso; esqueces-te que por vezes o mundo é pequeno...
Pôs-se de pé, e abriu uma das gavetas da secretária, da qual retirou um envelope branco que lhe estendeu. Voltou a sentar-se, e continuou:
-Tens nesse envelope, alguns cheques para provêr ás tuas despesas imediatas. Junta todos os valores que te ofereci, jóias, vestidos, tudo o que é teu, presentes que recebeste pelo casamento, leva tudo o que quiseres, e desaparece desta casa. Tens dois dias para isso, depois não te quero ver nunca mais.
Quanto às nossas meninas, ainda bem que estão no colégio interno, não voltes lá, porque não te deixarão entrar. Eu cuidarei para que nada lhes falte.
Saber-me traído é doloroso, mas teres-te esquecido de que eras mãe, é a minha maior mágoa, lembra-te disto. E agora podes sair.
A firmeza com que Gustavo falou era cortante, e Marília não se atreveu a dizer nem uma só palavra; levantou-se, e sentindo tudo a rodar à sua volta, saiu à pressa do escritório com o envelope na mão, fechando a porta atrás de si.
A casa ficou em silêncio...
Duas grossas lágrimas deslizaram lentamente pelas faces trigueiras do Dr. Gustavo.
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Tinham passado tres anos e meio. Marília residia agora na cidade denominada Sá da Bandeira. Vencidos os remorsos e as mágoas que a atormentaram, voltou a ser feliz. O Alex não a desiludiu, àquela paixão inicial, sucedeu um grande amor, que a cada dia se tornava mais sólido. A vida em sociedade, aquelas festas habituais em África, que ela frequentava em Lourenço Marques, foram retomadas aqui nesta cidade, onde o Alex estava muito bem relacionado, porque tinha ali a sede das suas empresas. A Saudade, mulata forte e bonita, ao serviço como ama, cuidou-lhe do bébé desde o nascimento; o Fernandinho, que agora com dois anos, era um encanto. Outras criadas estavam também ao seu serviço; Marília parecia uma rainha, uma rainha elegante e bonita.
Naquela noite, ao jantar, o Alex muito animado olhou Marília nos olhos e "disparou" : - adivinha a surpresa que eu tenho para ti, é uma coisa que tu desejas muito, ora adivinha, vá...
- Uma coisa que eu desejo muito ? Sei lá, diz tu... ele adiantou :
- olha vamos a Portugal, já marquei para o próximo navio, será no Príncipe Perfeito que iremos viajar. A minha familia vai ficar encantada contigo e com o menino, ele está tão bonito... e com a tua família vai ser igual, vão matar as saudades todas... Marília comoveu-se, e nem sabia se havia de acreditar...- Isso é verdade? Repete! Repete!
E a viagem aconteceu, Chegaram em bem a Lisboa. Depois, sucederam-se os bons momentos nas casas dos parentes do Alex em Cascais, a família era grande, e todos queriam a presença deles num almoço ou jantar, e a Marília via adiar a ida para a sua terra. Já tinha informado a família acerca da chegada a Lisboa, e que depois avisaria na altura, para contarem com eles.
Estava a ficar ansiosa, e naquela manhã foi aos correios; telefonou para o café do sr. Melo, aproveitou para o cumprimentar, e pediu para chamar a irmã, a casa ficava logo ao lado.
Teve más noticias, a mãe já idosa adoecera gravemente, algo infeccioso que estava difícil de debelar, estava mesmo em risco de vida.
De lágrimas nos olhos, disse ao Alex, que ia de imediato no primeiro combóio. Era perigoso levar o Fernandinho, assim, ficava em Cascais com a ama e com ele. Ela é que era filha, ia já, e nem sabia se não seria tarde de mais...
Chegou a tempo, a alegria por ver a filha até animou um pouco a doente, e Marília decidiu ficar, talvez a mãe recuperasse... e nessa altura então viria o Alex e a ama com o Fernandinho.
Tinham passado três semanas. Marília estava sentada junto à cama da mãe, quando ouviu bater à porta. Foi ver; era o correio;- uma carta com aviso de recepção para D. Marília, é a sra. não é? Ela confirmou. Era do Alex - que esquisito, pensou... E foi ler, mas para o seu quarto.
Um barulho estranho soou pela casa. A Irmã correu a ver o que seria e entrou no quarto - meio enrolada sobre si mesma caída no chão, estava a Marília... - o que foi isto? perguntou aflita, enquanto tentava arrastá-la para a cama; ela sem voz, apontou para a folha escrita e o envelope igualmente no chão. A irmã apanhou a carta...
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" Marília
Sei que vais sofrer. Perdoa-me, porque no coração não se manda. Sabes isso por ti própria...
Apaixonei-me sem querer pela minha prima Lena; e eu que sempre afirmei que nunca me casaria, vou casar em breve. Resolvi regressar mais cedo a África, embarco daqui a pouco, levo o nosso Fernandinho, deves compreender que comigo ele terá tudo, o que te seria impossível proporcionares-lhe. A ama Saudade, continurá com ele na minha casa, ele não irá sofrer, será um menino d'oiro.
Financeiramente, tu não ficas mal, aumentei o depósito da tua conta bancária.
Mando-te um beijo, sinto que não o aceitas, mas peço-te por Deus que aceites o meu pedido por um perdão que te rogo, embora saiba que o não mereço.
Alex"
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Passado o grande choque, surge sempre o momento da reflexão... Marília amargurada, voltou a ler a carta, uma e outra vez... Fechou os olhos, e alheia ao que se passava à sua volta, ela via o seu passado, em pormenor, como se fosse um filme. Pensou no marido, o Dr. Gustavo, estava a vê-lo... um homem fascinante, cheio de qualidades, e que a adorava.
-Também ela o trocou pelo Alex há quatro anos atrás... Agora é que sentia quanto isso dói...
Com as lágrimas em catadupa a correr pelas faces, murmurou baixinho: - Alex, só o meu perdão te basta, e és um homem feliz... Que facilidade! Mas quem sou eu, para te censurar?! Deixares-me para trás, é o meu castigo...
" Cá se Fazem, Cá se Pagam ! E Eu, tenho de Pagar..."
8 comentários:
Amiga Dilita, um conto que nos faz pensar, viver é mesmo assim, nem sei se há castigos assim, "aqui se faz e aqui se paga", mandar no coração ninguém consegue, em casos assim só houve amor da parte do Dr Gustavo, o primeiro marido, mas em contrapartida, ela amou o homem por quem o deixou e também a deixou por não amá-la de verdade!
Acho que a vida tem dessas armadilhas!
Bom texto, gostei de ler!
Abraços linda amiga!
Vidas cruzadas e emaranhadas!
Sem dúvida..."Cá se fazem, cá se pagam"!
Beijinhos.
Boa noite, Dilita
seu conto me deixou muito apreensiva para chegar ao final.
É aqui se faz e aqui se paga.
Nossa vida é feita pelas nossas ações e das quais recebemos as reações. Gostei muito. Beijos!
Ficção ou realidade?!
Seja como for, a crueza dos factos apenas retrata os encontros e desencontros de histórias do dia-a-dia...Não é uma questão de "crime e castigo" mas das leis da natureza a equilibrarem os pratos da balança de vidas consumidas pela paixão que, como se sabe, é má conselheira!
Afectuosamente,
Zito
Bom! Não sei o que dizer!
Todos os ingredientes de um belo conto, trama, amor, infidelidade e vingança, do destina, mas vingança.
Parabéns!
Pode continuar sem medo é uma boa contadora de estórias. Eu adorei!
Querida Dilita quando entrei na história senti que a traição estava acontecendo, pobre médico, um homem bom, mas Marília,aquela assanhada rs - brincadeira - então comecei a pensar e não acreditar, estava dando tudo certo para ela, ela que traiu a confiança do marido...fiquei me dizendo aqui se faz, aqui se paga...mas continuava ela linda e loira na história e eu já me indignando por ela se dar bem. Na verdade, economicamente ela continuava bem, mas provou do próprio veneno, e eu maldosamente feliz, não suporto traição, seja qual for..e para minha felicidade acabas o conto com tal dito popular, que pensei tanto quando lia:
" Cá se Fazem, Cá se Pagam ! E Eu, tenho de Pagar..."
Minha amiga, adorei tua história, fugiumpouco da realidade e me permiti viajar, estar dentro deste conto e foi um prazer.
ps.Carinho resepeito e abraço.
Venho desejar uma boa semana.
Não tenha receio, vá em frente!
Tem tudo, imaginação e sabe contar ua estória.
Agora é continuar porque o resto vem com a perseverança.
Bom texto, muita armadilha nessa vida,hein?
MAs ...no fim há uma paz que se costruiu no meio, por entre , através de toda a desventura e aventura ...
Gostei...
Voltarei!
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