domingo, 12 de abril de 2015

A visita Pascal tão desejada...

O tempo estava enevoado. Era costume, ninguém sabia explicar esta espécie de fenómeno, que acontecia sempre na semana que antecedia a Páscoa - era mais notório  na quinta e sexta feira santa. Parecia que o tempo se associava à data da paixão e morte de Cristo, e se entristecia também.
Num destes dias era dia santo da parte da manhã, no outro da parte da tarde - as pessoas esperavam pelo fim das horas santas, para iniciarem os trabalhos de limpeza das casas, as tradicionais limpezas da Páscoa. Também para irem ao monte apanhar o rosmaninho, e outras verduras aromáticas que seriam espalhadas à entrada das residências, tapete natural por onde passaria a comitiva que vinha com o Padre dar Boas Festas e Aleluias, abençoar as casas, e dar o Senhor a beijar no Domingo de Páscoa.
Esta azafama  das vizinhas fazia entristecer a Zilda - tristeza que aumentava  no dia da festa da Ressureição, porque a própria Igreja proibia a visita Pascal na sua residência. Já era assim há alguns anos, porém, ela ainda sofria...

Neste dia, à entrada da sua casa não havia verduras, a porta estava fechada, e até as janelas com as portas interiores, semi-cerradas, davam a entender que aquela familia se tinha ausentado,
mas não... Zilda no outro lado da casa, ouvia o tilintar  da campaínha, que o sacristão abanava fortemente à porta de cada residência, e as vozes alegres das pessoas nas janelas, os foguetes que estoiravam no ar ali ao lado, e não raro caíam-lhe as lágrimas.
Depois, retomava o croché, ou pegava no ultimo romance que tinha comprado à uns dias atrás.
A filha ainda brincava com as bonecas, entretinha-se a fazer-lhe vestidos, pois nesse Domingo não tinha ordem de ir para casa das amigas e companheiras da escola.
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Agora a rua já estava em silêncio, a tarde  caminhava para o fim.

Zilda acendeu o fogão a lenha  para preparar a comida, que já estava no tempero. Canja, arroz de cabidela e frango assado com batatas à volta. Tinha feito também uma travessa de arroz doce.
Ia colocar a toalha bordada na mesa da sala, e os pratos antigos que a avó lhe deixou.
Agora sim, era a sua festa de Páscoa - tinha uma visita para jantar - era o pai da filha - ano após ano, neste dia, a sua presença era uma certeza. No fim havia sempre um vinho do Porto e um brinde - tilintavam os dois cálices e outro mais pequenininho, por voltarem a estar ali juntos na próxima Páscoa.
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No ano seguinte o Padre foi transferido, e outro veio assumir a Paróquia. Num Domingo que antecedia a Páscoa, na hora da Missa ele disse que neste ano não faria excepções como o colega anterior, e ia entrar em todas as casas que tivessem a porta aberta.

Zilda, mulher de fé, ia á Missa aos Domingos, e ouviu a informação... ficou contente, mas um tanto receosa decidiu falar pessoalmente com o Padre.
- Ele confirmou, que de facto seria assim; - depois no futuro se veria... Mas não deixou de lhe lembrar que ela vivia ás custas dum homem casado, de quem tinha até uma filha. Era verdade, mas Zilda sentiu-se magoada. Tantas vezes ela em silêncio se lamentava da sorte que Deus lhe dera... E agora vinha este rapaz Padre, lembrar-lhe o que ela não esquecia...Perguntou a si própria se devia ou não abrir a porta....

No Domingo de Páscoa, Zilda na sua sala, com algumas amigas  recebeu a visita Pascal.
Contra o que julgava ser, não sentiu alegria. De pouca ou nenhuma religiosidade se apercebeu, achou tudo estranho, sentiu -se vazia. É falta de hábito, pensou...

Mas quando subiu a escada depois de ter vindo fechar a porta, teve a certeza - viu a passadeira toda marcada de verde, das plantas esmagadas pelos sapatos dos homens; na sala a carpete a mesma coisa, o chão de madeira encerado, sujo, e cheio de pingos de água benta... E aí não teve dúvidas, e afirmou
para si própria - foi a primeira vez, e será a última ! E foi!


9 comentários:

Jossara Bes disse...

Belo conto!
As tradições passam de gerações a gerações, hoje em dia, só assim em forma de palavras, quando alguém se dispõe a contar.
Obrigado por contar suas histórias!
Adoro ler aqui!
Tenha uma feliz semana!
Beijo carinhoso!

Liliane de Paula disse...

Arroz de cabidela, Dilita?
Como se faz?
Conheço galinha de cabidela.

Seu texto me lembro do meu tempo de criança em que no dia 13/12, comemorava-se o dia de santa Luzia e aí minha avó dizia que a gente não podia fazer nada para não "perder a vista".
Acho que a santa Luzia era protetora dos olhos.

Pois é. Foi necessário matar as abelhas.

Manuel disse...

Já tinha comentada esta bela crónica, mas alo aconteceu e não vejo o que escrevi.
Vou tentar novamente.
Adorei, tem o seu cunho muito especial, que apreciou pela simplicidade e pela Roma de nos levar enleais na estória.

Mona Lisa disse...

Adorei o conto.
Só assisti à visita Pascal em Luanda.

Beijinhos.

jair machado rodrigues disse...

Minha querida amiga Dilita, o conto já vale pela entrada, lindamente poética, talvez por ter fascinio por cerração ou tempo enevoado, como se estivesse triste pelo motivo da data, tocante. Daí fui na história de Zilda, gostei. falas de um preconceito, que enfraquecido nos dias de hoje, ainda existe contra a mulher. Gosto também de conhecer os costumes de uma terra distante de mim, mas como tudo, converge para uma mesma celebração. Gosto da menina inoscente, alheia a tudo, até ao sofrimento da mãe, mas que tinha uma boa alma que a atendia, reforçando sua fé. Já o novo padre, eu comparo a estes novos funcionários concursados nos dias de hoje, assumem e esquecem a que vieram, fazendo o mínimo exigido, fazer somente o protocolo...mal sabia Zilda do fardo que era ter de receber todo o ritual da visita.Gosto também, dá decoração, imaginei jardins e entradas de casas coloridos com flores, os aromas das verduras, um caminho de encanto para levar benção,oração e fé nas casas. Então ela teve de ceder, mas sómente por uma vez, pois após perceber aquilo de que se privava, mas tinha o amparo do padre antigo, se tornou um verdadeiro pesadelo a visita, colocando em xeque sua fé, que era tão bem conduzida pelo padre antigo. Gostei da menininha ficar a fazer roupinhas para sua boneca. Querida Dilita, mais um conto que fico contente em ler aqui. Carinho respeito e abraço.

Marly disse...

Olá, Dilita,


Cheguei cá por acaso, e vi que a visita foi-me proveitosa, pois muito admiro quem saber escrever bem. Gostei muito do teu texto, a estória nos recorda os preconceitos de outrora, dos quais, graças a Deus, já nos livramos, não é verdade? rsrs.

Um abraço

Nouredini.'. Heide Oliveira disse...

Do mesmo modo que Manuel, meu comentário também sumiu.
Disse e repito que a cada dia mais me encanta seus contos!

Manuel disse...

Gosto tanto de a ler!
Estou sempre à espera desses belos contos com que nos encanta.
Venham eles!
Desejo um bom fim de semana.

Clara Fernandes disse...

Bela escolha de palavras, numa descrição e narração que andam de mãos dadas a levar-nos no reencontro do casal e na sua Pascoa ( na "sua", tão deles), na sua renovação - que é disso que trata a Páscoa - de votos e carinhos.
Desencontro total com os costumes, desencontro quando se quer fazer o que a outros parece bem...afinal desejou-se o mesmo, mas o mesmo sapato não nos serve...e tanto que se sonho com ele!
Agridoce - como muitos dos contos que escreves.
bjinho