Recordei-me dos anos em que em Portugal se fabricavam Máquinas de Costura. A fábrica situava-se em São João da Madeira, e a marca da máquina era OLIVA. Ali não se fabricavam só máquinas, também criaram a publicidade inerente e puseram-na em prática. E era assim - uma Firma idónea em terra que parecesse promissora, era convidada a ser Agente daquela Marca - depois tratava-se de bater todos os lugares ao redor, para vender as máquinas. Falava-se da qualidade do produto, da facilidade de pagamento, e o mais importante - a menina para quem a máquina era comprada, tinha direito a ir aprender costura e bordados gratuitamente, num curso com a duração de três meses, o qual teria inicio em breve, em local perto da Agência.
Em Montemor uma Firma de prestígio aderiu e tornou-se Agente. Fizeram uns arranjos num rés do chão desabitado na rua principal, criando um amplo espaço. Ao lado da porta da entrada que era parcialmente de vidro, abriram a parede e criaram uma enorme montra também em vidro, de modo que claridade não faltava no Stand, e a luz fluorescente fazia o resto.
Quando o cheiro das tintas desapareceu, chegou o mobiliário... máquinas, bancos, uma mesa enorme, uma estante e um armário. Posteriormente veio o resto: tesouras, agulhas, linhas, esquadros,fitas métricas, papel, e artigos de tecido com motivos já desenhados, prontos a serem bordados.
Como na Vila não se passava nada, qualquer coisa de diferente era logo notada. Não foi preciso muito tempo para que toda a gente soubesse, que iria funcionar um curso de corte e bordados...
Eu já tinha acabado a minha aprendizagem, já tinha três anos de bordados à máquina, e de costura tinha a técnica, e alguma prática. Eu só tinha 16 anos.
Um dia passei e fui espreitar pela montra, lá estavam as máquinas alinhadas... A Agência ficava em frente do outro lado da rua, e não tardou ouvi uma voz ao meu lado - era dum contabilista que lá trabalhava à pouco tempo; era novo, simpático, e de modo delicado perguntou-me quando é que eu me queria inscrever para participar no curso... eu disse que já trabalhava, e que também não precisava de comprar máquina, porque já tinha - então ele disse-me que não fazia mal, podia ir na mesma, não era obrigada a comprar... mesmo assim eu declinei o convite.
Mas, daí a dias fui lá inscrever-me. Eu acho que no intimo me assaltou a vaidade, se bem que nunca soube lidar bem com a dita. Era uma vaidade escondida que me dava um certo gozo, porque de antemão eu tinha a certeza que já sabia bordar bem, e as outras não.
E na data marcada lá fui, e caladinha, fiz o que a Professora mandou fazer a todas - uns riscos de cordonett - pela forma como eu conciliava a máquina com o mexer do bastidor, não tardou que a Professora viesse ter comigo - deixei logo os riscos e passei a trabalhar a sério, de imediato.
Foram três mêses maravilhosos para mim, eu ia só na parte da tarde e, estava como peixe na água - convivi com as jovens do meu tempo, eu até as ensinava, conheci outras de terras mais distantes, fiz trabalhos bonitos, mas não aprendi mais nada, para além do que já sabia quando para lá fui.
No fim do curso os nossos trabalhos foram expostos num espaço alugado para o efeito, e ficaram durante uns dias. Ouve baile no sábado, e no Domingo fez-se fotografia, e ouve festa no Teatro - entrega de diplomas, e variedades com artistas do Porto, recordo o Ângelo Fernandes e a Maria Amélia Canóssa, entre outros.
Consideraram que entre os trabalhos expostos, um dos meus era o melhor, e a Agência atribuiu-me um prémio que ainda conservo - um espelho em forma de leque com aplicações em prata.
E tudo voltou ao antes, as máquinas calaram-se e regressaram "à base", o resto ficou, e a chave deu volta na fechadura.
Esta a foto do curso onde eu fui aluna... E agora digam lá, qual sou eu?
( Na fila inferior, sentadas, sou a terceira da esquerda, com blusa branca.)
Passado algum tempo, sei lá, teria eu talvez 19 anos - o mesmo empregado de então, agora já fazendo parte integrante da firma, foi ter com o meu pai (dantes era assim) convidando-me para ir dirigir o Stand em continuidade, só era necessário eu ter o curso de corte Oliva (eu tinha outro) mas era fácil, ia a Coimbra fazer isso que eles pagavam as viagens.
E daí a pouco mais dum mês, voltei ao Stand, agora como encarregada, cheia de entusiasmo e também com um pouquinho de mêdo... Posteriormente constatei que não devia ter sentido receio - algumas alunas eram mais velhas do que eu, mas sempre o respeito imperou entre todas nós - sem o pressentirmos, éramos uma familia...
Foi positivo, direi mesmo que para além de tudo o que classifico de agradável e vantajoso, foi igualmente motivo de realização pessoal.
E os dias iam passando, entre bordados e costuras.
Um dia este empregado, que já era um amigo, e amigo de toda a gente na Vila,entrou no Stand como de costume para levar o correio que o carteiro sempre lá deixáva, e depois de me cumprimentar falou assim - tenho um pedido a fazer-lhe. - Precisamos duma bandeira bordada para o Monte Pio, e queria pedir que a fizesse, não há prazo, embora seja muito necessária, pode até levar um ano, mas há um pormenor, não nos leve dinheiro.
Fiquei surpreendida, e nem respondi nada.
Não era fácil o que me estava a ser pedido...
Havia ali alguma responsabilidade. Não era um bordado qualquer, era uma cópia da antiga bandeira. Esta, um trabalho perfeitíssimo, bordado á mão sobre sêda natural, uma maravilha - na altura em tiras a desfazer-se em pó.
O meu pai sempre conselheiro alertou-me - "se és capaz vai em frente, se não és, não aceites..."
Eu fiz a bandeira!
E de acordo com o pedido não cobrei dinheiro algum.
"Eu amei"aquela bandeira.
Foram muitos dias de trabalho, curvada sobre a máquina, sempre com entusiasmo para chegar ao fim. Mas nesse dia eu senti-me triste, porque ia deixar de a ver... E antes de a embrulhar para entregar, levei-a para casa e coloquei-a na minha mala do enxoval, queria que ela levásse o perfume dos sabonetes... Eu se pudésse guardava-a para mim... Foi a minha melhor obra!
Num canto em pontos miudinhos e linha amarela (quase despercebido) bordei o meu nome, só a provar a minha autoria.
Guardei a fotografia que o meu pai fez questão que fosse feita - foi o Sr. António Rodrigues, o fotografo que a fez. É a única recordação que guardo.
E falo com mágoa ao dizer que dos responsáveis pela Associação em questão, nem um mísero cartão com a palavra obrigado,tiveram para mim. Nem tão pouco, pessoalmente, uma palavra.
Reuniram e apresentaram a bandeira aos membros presentes, mas também não me convidaram para a respectiva sessão.
Sei que alguns deles, talvez mais sensíveis, se manifestaram maravilhados.
Mas comigo, só silêncio e nada mais.
Não é percetivel na foto o desenho - é um castelo encimado por uma corôa - e sobre ele a meio, duas mãos ( um aperto de mão) um ramo de loureiro, e outro de folhagem menor. A rematar, uns arabescos bordados a azul forte, e contornados a cordão dourado, assim como todas as letras, mesmo as do lado inverso.