Quantas folhas de calendários se desprenderam já, ao longo destes quarenta e seis anos, sem me ser possível esquecer esta data. É uma recordação triste, que ainda dói, mas mesmo assim quero guardá-la, quero que viva comigo enquanto eu tiver memória. Aquele dia amanheceu sem sol,o tempo estava seco mas enevoado. Porém eu tinha a alegria na alma. Quase ainda era noiva, pouco mais dum mês tinha passado sobre o dia em que casada, passei a viver naquele 2º andar espaçoso e soalheiro na Cova da Piedade. Costumava ao fim da tarde quando começava a anoitecer, vir para a janela porque ao fundo da rua estava uma paragem de autocarros, e o meu marido vinha num deles. Eu esperava-o ansiosa, alvoroçada e feliz; via-o saltar do autocarro e depois caminhar apressado rumo a nossa casa.
Eu não cabia em mim de contente, e um dia pensei -daqui a uns tempos eu quero ir a Montemor, quero ir ver o meu pai e pessoalmente dar-lhe conta da minha felicidade. Vou aparecer lá de surpresa. Será daqui a um mês, ou dois, mas vai ser.
Mas na sequência daquele projecto tão alegre, um receio me assaltou. -E se o meu pai entretanto parte para o além? Com toda a força da minha alma eu afastei de imediato tal pensamento negro, e como crente que era nessa altura,disse para mim própria, e em vóz alta, não! -Deus não me fará esse mal !-E continuei com alegria a alimentar o projecto.
Em frente à minha casa havia uma pequena mercearia,donde eu passei a gastar.Era o proprietário que atendia e tinha um empregado, um miúdo ainda, que todos os dias logo de manhã vinha saber o que eu precisava; tomava nota num bloco,e depois vinha entregar.
Naquele dia sem sol, o miúdo tocou-me à campainha como de costume, mas além do recado habitual, ele trazia outro que se apressou a dizer primeiro.- Um recado da terra da senhora.
-Para telefonar com urgência; ao mesmo tempo que me estendia um quadrado de papel com um numero de telefone. Pensei logo o pior, mas recusei acreditar.
Ansiosa saí de casa e caminhei até aos correios que não ficavam perto.Pouco depois no telefone surgiu a voz dum amigo, que apelando à minha coragem me deu a mais triste noticia que eu alguma vez queria ouvir. O meu pai já tinha adormecido para sempre. Paguei a chamada telefónica, e calada saí do edifício. Sósinha, sem conhecer ninguém ali, e chocada com a dura realidade daquela perda irreparável, eu senti-me como que perdida num espaço sem limites.
Algo tonta, uma sensação de vazio envolveu-me, vacilei e encostei-me ao muro duma pequena ponte que ali existia. Uns soluços descompassados mas sem lágrimas, abriam-me o peito...
Passaram segundos, talvez minutos, não sei... triste e desanimada deixei o muro, único amparo naqueles instantes, e voltei aos correios para telefonar ao meu marido, que no trabalho ignorava tudo isto.
Viajámos para Montemor no comboio internacional o SUD como era designado, que ia para França e só parava em Fátima e em Coimbra, onde descemos para apanhar um táxi. Durante toda a viagem um vasto rol de boas recordações apareciam uma a uma na minha imaginação, e que saudades eu sentia já. E indagava de mim própria com amargura, se enquanto o meu pai estava entre nós, eu teria sabido valorizar devidamente a sua enorme dedicação por mim... ele conduzia-me como pai, e mimava-me como avô, possivelmente em virtude da idade de avô que ele tinha quando eu nasci.
Ainda vivem Montemorenses que se recordam dos nossos passeios ao Domingo e eu a fotografar pormenores da Vila. E eu lembro também algumas expressões carinhosas das pessoas que encontrávamos e nos saudavam, e nós saudávamos; por exemplo esta " ó sr. Abel porque não pôs a esta menina o nome Marianinha ? o nome da sua mãesinha, ela é tal e qual a Ti Mariana que Deus tem..."
-E ele sorria e explicava -olhe receei que depois lhe chamassem Ana, e como não gósto...
E assim em catadupa tudo a memória me trazia, incluindo a ultima vez que pelo seu braço eu caminhei, foi até ao altar no dia do meu casamento,tinha sido há tão pouco tempo. Nunca mais o voltei a ver, e não mais o veria com vida.
No dia seguinte, no dia 11 de Março com alguns amigos à nossa volta, eu em extremo silêncio, vi o meu pai baixar à terra. Ouvi uma voz ao meu lado dizer para o meu marido -ó Olímpio tire a menina Dília daqui, leve-a... Era a Francelina,uma pessoa modesta, porém rica no sentir, quanto ao próximo. Um táxi aguardáva-nos ao portão, e de imediato fomos embora rumo à Capital.
Um tanto revoltada, senti que na minha terra eu já nada tinha, e nem mesmo uma visita àquele local a que chamamos sagrado, eu desejava fazer. E passaram anos sem eu voltar. Mas um dia voltei; levei um ramo de cravos, e tive de pedir auxilio ao empregado, porque entre as campas ornamentadas apenas pelas ervas que nascem espontâneas, eu não encontrava a que procurava. E então chorei, chorei o que não tinha chorado anos antes, naqueles inesquecíveis dias 10 e 11 de Março de 1966.
O meu pai tinha jazigo de família, mas cedo afirmou não querer ser lá colocado. Queria ser sepultado como a mãe, e para além desse sentimento, tinha passado a vida ao lado dos pobres, não seria na morte que se afastaria deles.E por isso ali estava ornamentado com as ervas que a natureza pródiga distribui sem reservas.Isso não o afectaria eu sei, mas era demasiado duro para mim, não aguentei.E logo no dia seguinte tratei da compra daquele chão, e de seguida mandei colocar uma campa como ele merecia, sem contudo entrar em luxos exagerados que ele condenaria. Numa placa mandei gravar também umas frases em que lhe peço perdão por o estar a contrariar, mas que de cabeça baixa lhe presto homenagem.
Nunca mais aconteceu não saber o local do seu repouso, pois jamais deixou de ter flores e uma luz acesa sempre,dia e noite.
Quis falar no meu pai, recordá-lo aqui na data do seu falecimento, mas agora que acabo de ler, reconheço que me faltou engenho, não soube fazê-lo devidamente, não gosto do que escrevi...
Num dos habituais passeios pela Vila consentiu que eu o fotografasse, sentado no muro da feira. Vou colocar aqui essa fotografia.
9 comentários:
Lindo querida!Me emocionei demais com esta tua homenagem.Lembrei do meu pai e chorei por nós duas.
Flores para enfeitar tua alma.Bjs Eloah
Quando o que se escreve está embebido em sentimentos verdadeiros é sempre muito bonito. A forma como se escreve não é tão importante quanto a mensagem que se passa...está lindo!Beijinho*
Chorei, Dilita...
Que lindo texto de puro amor ao seu paizinho que já está nos braços de Deus!!
A morte faz parte da vida, não temos como fugir!E só o Criador para nos consolar para que sigamos em frente...até a nossa vez também chegar ....
beijinhos, um ótimo final de semana para ti e família
(querida, logo mais, responderei seu gentil email)
Lígia .~ ♥ ~.
Querida Eloah
Muito grata pelas suas palavras,pelo carinho e amizade que me dedica.
Beijinho
Tétisq
Agradeço a visita e a opinião que manifesta. Sim, tem razão.
Um abraço.
Amiga Ligia
Agradecida pela estima; já não é só a visita, são as palavras amigas.
Beijinho.
Bela homenagem ao pai, texto bem entendido, emoção à tona.
A vida é assim, é uma roda sempre em movimento, que às vezes se destrambelha e nos põe a pensar!
Beijinho, linda Dilita
Olá As-Nunes:
Grata pela visita. Palavras bonitas são sempre bem vindas; obrigada.
Volte sempre.
Caro Profeta
Já tinha notado a sua falta.
Bonitas rimas. Já fui ver na integra. Lindo como sempre.
Obrigada.
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