segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O Sr. Prior

Naquela semana a aldeia andava toda atarefada. Em boa verdade não era a aldeia mas sim os residentes, é que estava a chegar o dia da festa de Nossa Senhora. As raparigas que habitualmente cuidavam da Igreja, nesta altura redobravam de capricho para que no dia da festa tudo estivesse perfeito. O soalho lavado, as toalhas dos altares branqueadas e engomadas, e flores em todas as jarras.  Outro grupo ia procurar verduras, algumas aromáticas para  espalhar na rua por onde iria passar a procissão. E os mordómos encarregavam-se da aquisição dos foguetes, e do resto dos pormenores.

A festa começava com o têrço e sermão à noite na véspera, e no Domingo havia missa cantada e procissão. Era também a festa das crianças que nesse dia faziam a primeira comunhão; comunhão solene assim se dizia. Iriam vestidas de branquinho, vestidos vaporosos compridos, véus de tule e florinhas a pender-lhes da cabeça. Os meninos de fato escuro e laço de seda branca suspenso da manga do casaco; tudo fatinhos modestos, mas uma ternura!

De casa do Sr. Prior ia o pequeno almoço para as crianças, que para comungar estavam em jejum desde a meia noite até ao fim da missa. Comiam na sacristia em alegre convívio, onde eram colocadas mesas com loiças suficientes, não só para as crianças mas também para as familias que as acompanhavam; o meio era pobre, e o sr. Prior sabia disso.

Ele "apertava" com a governante: - Ó Júlia já amassaram as broínhas ? Não se esqueceram de lhe pôr as nozes, pois não? E os pinhões, e... Mas não chamou a mulher do Toníto para a ajudar, porquê? Ainda se vai atrasar...
A  Júlia veterana no assunto, estava tranquila; - descanse sr. Prior que tudo vai estar pronto a horas. -Claro que a chamei, já cá esteve a trabalhar e agora só foi a casa, e daqui a pouco voltará para pôr o lume ao forno.
- Espero que sim!  Já sabe que eu quero broínhas e café com fartura! Não quero ninguém a olhar!

-Está tudo tratado, não se apoquente e não me apoquente a mim. Ainda agora daqui vai o Ti Augusto das ovelhas, com o apontamento dos litros de leite que são precisos para amanhã de manhãsinha.
                       --------------------------------------------------------
                                                                                    -------------------------------------------------
Os pais do padre Matias possuíam muitas terras. Nesse tempo, quem tinha muitas terras era rico.
Tinham dois filhos, um foi para a Universidade, estudou Direito, e foi Advogado, e depois Juíz.
O irmão foi para o Seminário, é o Padre Matias.
Depois de rezar a primeira missa, veio para a sua aldeia viver o sacerdócio, e em simultâneo administrar os bens que havia herdado dos pais, entretanto já falecidos.

Também ele ficou rico; tinha casa, vinhas, e terras de semeadura; e pessoas a trabalhar para ele ao longo do ano. Era extremamente bem disposto; não raro ia até junto dos trabalhadores e fazia-os rir com as suas adivinhas...
Conhecedor da pobreza existente na sua aldeia, era muito generoso, quem lá fosse a casa tinha de comer; nunca perguntava se queria... apenas dizia;- ó Júlia não tem aí nada, peixe frito, ou bacalhau, e um copito para este ou esta fulana?! E logo de seguida -sente-se, para comer qualquer coisa!
Ela tinha sempre, e se mais não fôsse, broa, azeitonas e sopa nunca faltavam.
Não cobrava dinheiro algum, aos seus paroquianos. Todos os serviços religiosos necessários ele fazia de boa vontade, e não queria dinheiro. Mas aos lavradores ele fazia uma exigência; queria uma galinha como folár na Páscoa. E argumentava;- num ano vocês têm tempo de sobra para criar uma galinha para mim... Ele tinha criação no galinheiro, não tinha necessidade, mas queria aquele presente...
O Sr. Prior merecia, ele era um amigo, e o seu desejo era cumprido.
Assim, ninguém sequer se atreveu a censurá-lo quando constou que a Dª Júlia não era só governante, era algo mais...  Ela tinha vindo da cidade que ficava a uns 50 km (naquela altura era longe) era educada, e comunicativa, e não tardou a ser "adorada" por toda a gente da aldeia. Com o passar do tempo já lhe chamavam a Dª Júlia do Padre; mas de modo natural, nada de depreciativo. E assim o tempo ia passando no maior sossego.
                          --------------------------------------------------------------------------------
O sr. Prior achou que ela devia arranjar uma empregada doméstica. Fez mesmo questão; uma criada de servir, (era assim que se dizia) iria proporcionar-lhe mais descanso, e também seria uma companhia, até porque o sr. Prior não parava em casa. Ela achou bem e procurou.

A Florência começou a trabalhar lá, no principio do mês seguinte. Não sabia fazer quase nada, mas a Júlia, boa pessoa, ensinava-a com bom modo, e ela aprendia  com facilidade. Era muito dócil e alegre, não tardou que se tornássem a equipa perfeita, apesar de alguma diferença nas idades.

E tudo estava na maior paz, quando a Júlia, alta noite, lhe pareceu ouvir uns rumores estranhos no piso superior da casa, onde ficava só o quarto da Florência.
Apurou mais o ouvido, e nada, só silêncio...
-Que Deus me perdôe, murmurou para si, e daí a pouco adormeceu.
Mas numa das noites seguintes, já não teve dúvidas. Ali havia mesmo pela calada da noite "romaria de pé descalço..." Um misto de revolta e mágoa tirou-lhe o sono.
De manhã chamou a Florência, falou-lhe com brandura, e a pobre môça em pranto, só lhe pedia segredo, e que não a despedisse. Teve pena dela, choraram as duas, num só abraço.
                     --------------------------------------------------------------------------------------------
A Júlia era boa cozinheira, e o sr. Prior um bom garfo. Gostava de caça. Ele próprio era caçador, e quando lhe apetecia, lá ia ele de espingarda ao ombro calcorrear os montes à procura  dum coelho bravo, ou duma perdiz...
Naquele dia regressava ele feliz com dois coelhos, quando ao entrar em casa se deparou com a Júlia bem vestida, sentada na saleta, e duas malas no chão a seu lado.
Prevendo algo desagradável perguntou.
- O que é isto?
A Júlia levantou-se e com a calma que conseguiu reunir, respondeu:
- Estava à sua espera, para lhe dizer que me vou embora. E isto porque lhe tenho respeito, porque se assim não fosse, tinha ido sem lhe dar nenhuma satisfação. Sabe do que estou a falar, não preciso de lhe dar pormenores.
O sr. Prior engoliu em sêco, porque não entendia nada - espere, eu quero...
Ela não esperou.
-Adeus!
Pegou nas malas e saiu. Ia voltar prá sua cidade.

Sentada na carruagem quase vazia, no combóio que saira da estação aos solavancos, a Júlia olhava a paisagem sem a ver, só via a sua vida passada e presente. Sentia-se triste, e dizia para si - é bem verdade -"o amor não se vai buscar à Igreja..." não é um exclusivo dos casados.
                      --------------------------------------------------------------------------------------
O padre Matias era alto, de boa figura e bom aspecto, mas foi a sentir-se pequeno que ele entrou na sala onde o sr. Bispo o aguardava.
Não tinha dormido nada na noite anterior, depois de ter recebido o recado para se apresentar com brevidade. A viagem de combóio foi lenta, desagradável. Encostado no canto do banco, e de olhos fechados, ele recordava o dia em que a prima Lurdes lhe apresentou a Júlia, para trabalhar na sua casa como governante.  No coração não se manda, e ele gostou logo dela. - Mas para que me havia de dar? dizia para si próprio.... É bem certo, na hora do diabo, não lembra Deus... E não lembra mesmo! Ora eu não podia ter procurado uma velha? E agora o que vou eu responder ao sr. Bispo, sim, porque eu já sei do que ele me vai acusar...

O Bispo recebeu-o com frieza, como ele previra, e de seguida informou-o da acusação que sobre ele caía  referente à governante, que com ele coabitava havia já muito tempo. (palavras do Bispo)
Por incrível que pareça, não se sentiu perturbado, e foi com muita calma que esperou as ordens do seu superior, que foram no sentido de mandar a Júlia embora de imediato.
- Sentiu-se gelar e respondeu com uma pergunta: - mandar a Júlia embora?
Mas, sr. Bispo permita  que eu explique; - neste caso pecaminoso que confesso verídico, estão envolvidos dois sêres. Qual deles terá a maior cota de pecado, a Júlia ou eu? A nossa doutrina só aponta o pecado no mais débil?  Então e o outro, o mais forte, está isento? Aceita-se o seu mau
procedimento  como normal ? Use, abuse e ponha fora, será esta a regra? Então a nossa doutrina manda-me jogar na valeta a mulher que eu próprio desencaminhei?
-O Bispo  olhava para ele com ar estarrecido, e nada dizia.
-Não me revejo na sua doutrina sr. Bispo. Confesso que fiz mal ! Mas não vou duplicar o mal que fiz. Não posso! E não devo, e nem quero. E deitando as mãos ao pescoço arrancou a identificação de Padre, aquela tirinha branca a que chamam cabeção. Pôs-se de pé, agora um tanto exaltado, aproximou-se do Bispo  ao mesmo tempo que lhe estendia "o objecto" e  em voz alta exclamou: - tome a coleira, não a quero mais!
                         ---------------------------------------------------------------------------------------
Alguns mêses depois, dois pares de noivos recebiam as bençãos matrimoniais no mesmo dia, na Igreja da aldeia, toda florida para a cerimónia:- eram eles, a Dª Júlia, e o Sr Matias.

E também a Florência e o Armando.
(o Armando era o maroto  que subia pela parreira, e entrava pela janela do quarto da Florência, altas
horas da noite...)

6 comentários:

Mona Lisa disse...

Adorei o conto.

Um padre íntegro...uma raridade nos tempos de antanho!

Beijinhos.

dilita disse...

Bem vinda D.Lisa

Fiquei contente por saber que gostou do conto.
Talvez seja um tanto extenso...

Obrigada pela visita.
Abraço.

Nouredini.'. Heide Oliveira disse...

Querida,
sua prosa, a cada dia mais gostosa, me cativa.
Parabéns!

Manuel disse...

já aqui o disse e vou repetir:
A amiga é uma bela contista, tem tudo o que é necesario. Sabe escolher um tema, sabe como desenvolver e deixar o leitor preso à espera do que vem a seguir.
Pense nisso!
Bom fim de semana!

dilita disse...

Obrigada Nouredini.
Um abração.

dilita disse...

Olá Manuel

As suas palavras me dão força.
Obrigada.
Grata também pela visita.
Abraço.